O Seara e o nexo Estado-Finanças-Imobiliário
Esta é a fronteira mais vergonhosa e desumana da produção capitalista do espaço urbano. A gentrificação já não chega! A especulação imobiliária já não é suficiente!
O Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara, em Arroios, foi criado por um grupo de pessoas que ocupou um antigo infantário abandonado e o transformou num centro de apoio de ajuda a pessoas carenciadas, em situação de fragilidade e vulnerabilidade social, incluindo sem-abrigo. Por várias semanas, foi um exemplo de solidariedade activa, emancipatória e emancipadora, informal e desembaraçada das teias do assistencialismo institucional que recrudesceu nos últimos meses em virtude da expansão da pandemia covid-19 e da crise económica e social que se instalou no país. No passado dia 8 de Junho, pelas 5h30 da manhã, cerca de uma dezena de capangas privados armados entraram à força e tentaram, desprovidos de ordem de despejo, notificação atempada ou quaisquer documentos legais requeridos para executar uma desocupação; despejar as pessoas que ali se encontravam. Os próprios voluntários do centro, que estavam nas instalações, chamaram a PSP para os proteger de algo que estava a acontecer à margem da lei, como é devido no Estado de Direito. O dia seguiu-se com a concentração gradual de muitas dezenas de pessoas no Largo de santa Bárbara, umas mais interventivas, outras mais perplexas, perante a situação de luta de forças entre autoridades e activistas. Mais tarde assiste-se a uma desproporcional intervenção da polícia de intervenção que, agressiva e desumanamente, arrastou as dezenas de activistas que pacificamente se manifestavam em frente do edifício.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara, em Arroios, foi criado por um grupo de pessoas que ocupou um antigo infantário abandonado e o transformou num centro de apoio de ajuda a pessoas carenciadas, em situação de fragilidade e vulnerabilidade social, incluindo sem-abrigo. Por várias semanas, foi um exemplo de solidariedade activa, emancipatória e emancipadora, informal e desembaraçada das teias do assistencialismo institucional que recrudesceu nos últimos meses em virtude da expansão da pandemia covid-19 e da crise económica e social que se instalou no país. No passado dia 8 de Junho, pelas 5h30 da manhã, cerca de uma dezena de capangas privados armados entraram à força e tentaram, desprovidos de ordem de despejo, notificação atempada ou quaisquer documentos legais requeridos para executar uma desocupação; despejar as pessoas que ali se encontravam. Os próprios voluntários do centro, que estavam nas instalações, chamaram a PSP para os proteger de algo que estava a acontecer à margem da lei, como é devido no Estado de Direito. O dia seguiu-se com a concentração gradual de muitas dezenas de pessoas no Largo de santa Bárbara, umas mais interventivas, outras mais perplexas, perante a situação de luta de forças entre autoridades e activistas. Mais tarde assiste-se a uma desproporcional intervenção da polícia de intervenção que, agressiva e desumanamente, arrastou as dezenas de activistas que pacificamente se manifestavam em frente do edifício.
Mas para além de todo o figurino deste triste teatro de superfície, gostávamos de aprofundar a arqueologia do momento para o perceber como recorte paradigmático do nexo Estado-Finanças-Imobiliário. Na verdade, a desocupação ilegal dos vários activistas do Seara, despejo executado à força por uma empresa de segurança privada, paga para impor a lei do mais forte, revela, agravada pelo conluio das próprias forças de autoridade e de intervenção pública, o mais obsceno da luta de classes e a contradição maior de um urbanismo austeritário, apadrinhado pelo Estado: a clivagem que existe entre o direito à habitação versus direito à propriedade que, alimentada pelo Estado, favorece os interesses da Finança e do Imobiliário.
Mesmo perante quem ocupa por questões de valor de uso e necessidade vital de apropriação de um espaço devoluto, que legitimidade tem o direito de emparedar um prédio, que já estava devoluto e não cumpria a função social da propriedade que a Lei de Bases da Habitação obriga? Prédio que abrigava os “outros sociais”, a quem não são garantidos direitos fundamentais de tecto, abrigo, alimentação e cuidados sociais mínimos para uma qualidade de vida digna. Alguém dizia e bem, que esta situação se assemelha a um indivíduo que, enfartado, deixa no prato um bife em excelentes condições de ser consumido, mas que prefere deixar apodrecer, do que deixar que mate a fome a quem está desesperado por algo para comer.
Esta é a fronteira mais vergonhosa e desumana da produção capitalista do espaço urbano. A gentrificação já não chega! A especulação imobiliária já não é suficiente! Já não chega ficar sem tecto e expulso de um abrigo que era a única “casa” que tinha, despojado de tudo. Mesmo assim, o Capital ainda vai mais fundo na alienação que produz na cidade. Não aliena apenas o pouco de que alguém se apropria para ajudar os outros. Ele quer alienar a cidade da sua humanidade, do seu valor social de uso, criminalizando-o. Tem que despejar e expulsar a humanidade, a bondade, o pacifismo, a solidariedade, o apoio mútuo e o amor ao próximo, ao abrigo de um corpo de intervenção ao serviço do Estado, colocado ao lado dos mais fortes e dominantes, subserviente aos interesses do complexo imobiliário-financeiro global dos fundos de investimento internacionais. Já não é só a simples luta de classes, nem acumulação de capital e mais-valia. É a acumulação por despossessão/espoliação.
Não esquecer que tudo isto se fez de forma ilegal e de que se trata de um atropelo gravíssimo dos direitos humanos em período pandémico, contrariando as indicações da Direcção Geral de Saúde e da Organização Mundial de Saúde, pois, como se sabe, os despejos estão suspensos, em virtude de um pacote de medidas excepcionais e temporárias de resposta à crise pandémica aprovado pelo governo. Perante a complacência e impotência de todas as autoridades nacionais na matéria, incluindo do senhor ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e do senhor presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e de outras entidades competentes; resta tomar as diligências necessárias na Assembleia da República para apurar responsabilidades de violação dos direitos humanos em período pandémico, bem como ponderar apresentar uma queixa formal contra o Estado Português ao Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas.