O tribunal do tráfico
A melhoria dos indicadores nos nossos tribunais é fruto, em grande medida, de políticas governativas que têm como resultado exclusivo afastar os cidadãos do sistema, encarecendo-o. Assim, é fácil.
Um país sem sistema de justiça funcional não tem futuro. Se os cidadãos não puderem recorrer ao Estado para obter Justiça, fá-la-ão por si próprios, ou instalar-se-á um sistema paralelo ao estadual que se encarregará de assegurar a ordem. É uma realidade que existe em muitas favelas brasileiras onde a Justiça é administrada pelos grupos criminosos que as controlam, o conhecido “tribunal do tráfico”.
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Um país sem sistema de justiça funcional não tem futuro. Se os cidadãos não puderem recorrer ao Estado para obter Justiça, fá-la-ão por si próprios, ou instalar-se-á um sistema paralelo ao estadual que se encarregará de assegurar a ordem. É uma realidade que existe em muitas favelas brasileiras onde a Justiça é administrada pelos grupos criminosos que as controlam, o conhecido “tribunal do tráfico”.
O nosso país está longe, felizmente, da realidade brasileira em muitos aspetos, mas a verdade é que também por cá existe uma franja significativa da população privada do acesso aos tribunais.
Em teoria, aqueles com menos recursos financeiros poderão recorrer, no âmbito da segurança social, ao sistema de apoio judiciário. Na prática, só os mais pobres dos pobres terão acesso gratuito aos tribunais. Todos os demais, a esmagadora maioria dos cidadãos deste país, estão obrigados a pagar custas judiciais. E o valor destas é muito significativo.
Alguém que aufira um salário líquido mensal de 700 euros, com o qual custeia as suas despesas correntes como renda de casa, alimentação, água, luz, etc., e que pretenda instaurar uma ação em tribunal terá de pagar a chamada taxa de justiça inicial. Se o litígio se referir a um imóvel com um valor patrimonial de 110 mil euros, por exemplo, a taxa a pagar é de 1020 euros. Se a este montante somarmos os honorários do seu advogado, é fácil perceber que o pagamento destes valores é incomportável, mesmo sabendo-se que, no âmbito do apoio judiciário, aquela taxa de justiça poderá, neste caso particular, ser paga em prestações.
E, assim, muitas e muitas ações judiciais cíveis ficam pelo caminho antes mesmo de chegarem a um tribunal.
No foro criminal, um lojista que participe um pequeno furto no seu estabelecimento terá depois, na maior parte dos casos, de constituir-se assistente no processo (102 euros) e deduzir acusação particular, o que implicará garantir os serviços de um advogado. É claro que estas despesas dificilmente se justificam quando estão em causa delitos respeitantes a bens de escasso valor. E, assim, de uma só assentada, se matam dois coelhos: melhoram as estatísticas da criminalidade, e diminuem as pendências nos tribunais criminais!
A situação é conveniente para o Ministério da Justiça que pode anunciar consistentemente reduções no número de ações judiciais pendentes nos diversos tribunais. Percebe-se porquê.
A carência de meios justifica também que muitos optem por representar-se a si próprios em tribunal, por vezes com consequências funestas, e a que já me referi em artigo anterior.
É fastidioso dizer-se que a Constituição assegura o acesso universal à Justiça e a consagra como uma das tarefas primeiras do Estado, garantindo que ninguém poderá ser dela privado por insuficiência de meios económicos (art. 20.º). A prática, como se vê, é outra.
A melhoria dos indicadores nos nossos tribunais é fruto, em grande medida, de políticas governativas que têm como resultado exclusivo afastar os cidadãos do sistema, encarecendo-o.
Assim, é fácil.
Os bandos criminosos que controlam as favelas do Rio e São Paulo há muito perceberam que a manutenção da paz e da ordem implica um sistema de Justiça atuante ao serviço dos habitantes. E por cá?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico