Uma portuguesa em confinamento na Ilha Resplandecente: entre o paraíso e o medo
O Sri Lanka era o primeiro destino da aventura de Mariana Rodrigues. Planeava passar um mês a viajar no país, para depois seguir para o Camboja. Mas a pandemia trocou-lhe as voltas e a portuguesa ficou por aqui em confinamento.
Há já quatro anos que Mariana Rodrigues começou a tradição natalícia de se presentear com um bilhete só de ida, depois de um ano de trabalho. Em meados de cada Fevereiro, ruma sozinha à aventura e vai de mochila às costas conhecer o mundo. Este ano, o destino escolhido foi o Sri Lanka, a chamada Ilha Resplandecente, no Oceano Índico.
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Há já quatro anos que Mariana Rodrigues começou a tradição natalícia de se presentear com um bilhete só de ida, depois de um ano de trabalho. Em meados de cada Fevereiro, ruma sozinha à aventura e vai de mochila às costas conhecer o mundo. Este ano, o destino escolhido foi o Sri Lanka, a chamada Ilha Resplandecente, no Oceano Índico.
Mariana começou a aventura tranquilamente. Na altura, havia poucos casos na Europa e um identificado no Sri Lanka, apenas se desaconselhando viagens não essenciais à China. Planeava viajar durante duas semanas e depois fazer voluntariado na LakAruna Foundation, uma organização não-governamental que se dedica a ensinar inglês e tecnologias a jovens cingaleses. A viagem, feita “ao sabor do vento”, devia ter resultado numa “compilação de amigos, histórias e fotografias”, que saciaria a vontade da trabalhadora independente de explorar até ao Fevereiro seguinte. Mas resultou em confinamento num país muito longe de casa.
“As notícias menos boas começavam a chegar de forma massiva, os números altos e pouco controlados que se registavam em Itália faziam temer o pior e começava a ser tema de conversa”, conta Mariana à Fugas, por e-mail, ainda no Sri Lanka, país que até à data, regista cerca de 2000 casos confirmados e 11 mortes, segundo os dados da Universidade Johns Hopkin. Mesmo quando o resto do mundo começou a fechar-se em casa, o Sri Lanka continuava “normal e sem grande perigo”, com casos “pontuais, e nenhum cingalês se mostrava preocupado ou alarmado com este novo vírus”.
A situação em Portugal era o que mais preocupava Mariana. “Era uma dualidade de sentimentos, porque via-os fechados em casa, em isolamento, e eu aqui a dizer-lhes que estava tudo normal”, conta a portuguesa sobre os telefonemas com família e amigos próximos. Proprietária de duas lojas vintage, no Porto, zelou pela “segurança de todos” e fechou os estabelecimentos ainda antes de ter sido declarado estado de emergência em Portugal.
A desinformação do vírus
Prevendo que poderia vir a ficar presa no país, Mariana decidiu, no que se viria a revelar o “pior timing de sempre”, prolongar o visto. Dias depois de entregar o passaporte no consulado português, e sem aviso prévio, foi declarado o estado de emergência na capital, Colombo. A cidade entrou em confinamento obrigatório, que começou por ser de 14 dias e acabou por durar dois meses.
“A quarentena foi instituída de uma forma severa pelas forças policiais: quem saísse à rua seria punido, obrigado a pagar multa ou forçado a fazer quarentena nos quartéis do exército”, recorda Mariana. Os espaços públicos foram todos verificados e qualquer caso suspeito ou identificado tinha de ficar em isolamento entre dois e 20 dias, num dos 40 centros de quarentena, construídos nos quartéis militares.
A 20 de Março, o confinamento estendeu-se ao resto do país. Os estabelecimentos turísticos começaram a fechar, os voos internacionais, para além de limitados, eram atrasados, cancelados, e custavam uma pequena fortuna. “Foi a primeira vez que tive uma crise pessoal, que é difícil de explicar: é uma sensação de abandono e de impotência, bastante assustador tudo ter acontecido de uma forma tão repentina”, partilha a portuguesa que ficou presa no país, com mais 11 mil estrangeiros, segundo o Ministério do Turismo do Sri Lanka, citado pela Xinhua, a agência noticiosa oficial da China.
Mariana tinha voo marcado para o Camboja no mês seguinte. Dada a incerteza de todos os planos, tentou que o voo cancelado por causa da pandemia fosse reembolsado ou que o destino passasse a ser a Europa, mas sem sucesso. Sem passaporte e assustada com os relatos de outros viajantes, que, ao tentarem regressar a casa, ficaram presos no país onde precisavam de fazer escala, Mariana decidiu ficar no Sri Lanka.
Com pouca informação disponível, os locais apenas sabiam que “havia um vírus fatal e que teriam de ficar em casa nos próximos quatro dias”. As máscaras eram improvisadas e nos supermercados havia “filas intermináveis de pessoas coladas umas às outras”. Caso “a pandemia escalasse rapidamente e de uma forma pouco controlada”, o Sri Lanka não ia conseguir dar resposta e as previsões não eram motivadoras.
O medo dos outros
“Se me sentava num restaurante local, rapidamente ficava vazio”, desabafa a portuguesa sobre o “distanciamento fortemente visível” que se instalou entre locais e turistas. Chegou a ver ser-lhe negada a compra de máscaras na farmácia, tendo o cliente seguinte, cingalês, conseguido comprar. Quando perguntava os horários dos autocarros, apenas lhe diziam que “não havia mais”. “A desinformação e o medo levaram a que algumas vezes eu tivesse sido vaiada. Um curto percurso a pé podia ser um desafio a nível emocional”, conta Mariana, que também sentiu os olhares de soslaio e não conseguia ter vez na fila do supermercado.
A procura de alojamento para o confinamento também não foi fácil. Estabelecimentos turísticos estavam maioritariamente fechados e os alojamentos do Airbnb recusavam acomodar estrangeiros ou “tentavam subtilmente dar a habitação como reservada”. Apesar de tudo, Mariana acabou por encontrar uma “pequena casa local, com o conforto e facilidades necessárias”, na cidade de Weligama, no Sul do Sri Lanka.
Para evitar a total paralisação do país, eram feitas “rondas” de confinamento obrigatório, com duração imprevisível. Quatro dias podiam passar a seis, “o que dificultava muito a organização de produtos alimentares e outros bens necessários”. Terminada a ronda, os habitantes dispunham normalmente de oito horas para sair à rua e comprar o estritamente necessário. Era durante esse período que a propagação do vírus ganhava força pois os supermercados e farmácias enchiam-se de gente. Para evitar os aglomerados de pessoas, os períodos de desconfinamento e as normas de segurança e higienização foram aumentando ao longo das semanas. Tornou-se obrigatório o confinamento entre a meia-noite e as seis da manhã. Desde o início do confinamento até dia 9 de Maio, foram detidas milhares de pessoas por não cumprirem as regras do confinamento, segundo as autoridades cingalesas – mais de 55 mil, noticiava a agência chinesa Xinhua, que cita a polícia local.
Informações relativas ao vírus e ao confinamento chegavam aos habitantes através dos noticiários e altifalantes espalhados estrategicamente pelas cidades por motivos religiosos. Apesar de os comunicados serem em cingalês, Mariana recebia as informações através da aplicação Watchdog ou do grupo “Corona commune Sri Lanka”, uma conversa no WhatsApp com cerca de 300 viajantes que partilhavam notícias e experiências.
Com o passar das semanas, as carrinhas de street-food já eram permitidas. Seguiram-se carrinhas maiores que vendiam “um cabaz de bens essenciais a pequeno custo”. “E mais tarde, de forma bonita e humanitária, começaram a chegar recursos de forma gratuita para as famílias mais carenciadas”, conta Mariana. Todos os vistos foram prolongados até dia 11 de Julho, informou o Departamento de Imigração e Emigração do país, e, com o desconfinamento, os turistas passaram a ter a responsabilidade de apresentar “um documento assinado que indique que se fez o isolamento num determinado sítio” sempre que fossem para outro distrito. Também se começa a notar uma mudança de atitude nos locais que já esboçam “sorrisos afáveis por detrás das máscaras”.
“De um lado vejo o mar, do outro estou inserida na selva. Fazer um confinamento nestas condições é um privilégio”, conta Mariana, que celebrou o 30º aniversário acompanhada de um bolo comprado dois dias antes em vez de, como desejara, com a mãe e a melhor amiga, no Camboja. Com o mar a cem metros de distância, a portuguesa ainda arriscou um mergulho fora de horas, que foi “rápido e abençoado”.
“Viajei de forma diferente, nunca tive tempo [antes] de ficar num só lugar. De mochila às costas andava sempre numa grande ansiedade de conhecer mais sítios”, partilha Mariana sobre a experiência de viajar interiormente durante o isolamento. “Nos próximos dias, com todas as medidas de segurança, de distanciamento social e uso de máscara, farei este país de sul a norte, para que consiga ter um pequeno melhor desfecho pós-covid”, acrescenta ainda a portuguesa que tem o voo para Portugal previsto para 20 de Julho, dia em que completa cinco meses na Ilha Resplandecente.
Texto editado por Carla B. Ribeiro