A ressurreição da estupidez
O medo é tipicamente um atalho emocional relevante para nos protegermos, não demorando um tempo excessivo a ponderar motivos a favor e contra determinados cursos de acção.
“O número de idiotas que há no mundo é igual ao número de não idiotas que não há no mundo – finaram-se. Também eu.”
Dombrov, Lukitsch Dombrov
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“O número de idiotas que há no mundo é igual ao número de não idiotas que não há no mundo – finaram-se. Também eu.”
Dombrov, Lukitsch Dombrov
1. O bestiário indexado ao Índice de Estupidez Humana (IEH) tem incorporado alguns elementos não desprezíveis em situação pandémica. Se é seguro que os níveis de IEH ocupam patamares distintos numa escala gradativa — da mera estupidez à negligência grave, agregando actos de vandalismo injustificado, até à mais sumptuosa manipulação política –, não é menos verdade que a sua replicação recente, em países ditos desenvolvidos, é intrigante para quem desconheça a matéria-prima de que também somos constituídos: de Nápoles a Carcavelos, de Estugarda ao Porto, em plena Cordoaria, deslocalizando-se, ao que se segredou, temporariamente para Gaia, e com efeito de boomerang retornando à origem, com a “betomania” das Docas, em Lisboa, a não pretender ficar atrás no ranking IEH.
Não fosse isto suficiente e ainda somos alvejados pela “trumpada” confissão de que para combater a gravidade da situação pandémica há nova metodologia científica, por mero acaso desconhecida da Nature à Lancet: diminuir o número de testes para a covid-19: “Quando testamos a esta escala, encontramos mais casos. Por isso é que eu digo à minha equipa: ‘Reduzam o ritmo dos testes, por favor.’” Sim, se também passarmos a não contar os mortos como mortos, mas tão só como potestades luminosas que ascenderam à Terra Gémea, num universo paralelo em que não haverá qualquer tipo de sofrimento e em que se gozará de irrestrita libertinagem sem qualquer maléfica consequência para os outros e, já agora, para si próprio, então, os mortos estariam provavelmente melhor pelo menos do que a esmagadora maioria dos vivos.
2. Para esta distópica visão das coisas terá contribuído a ideia, transmitida de forma ilustrativa por muitos decisores políticos, de que, bem vistas as coisas, a economia em geral, e a economia do mero divertimento em particular, não poderiam parar. E se é verdade que a economia não deve parar, não se deve querer que não se observem regras prudenciais e éticas e, consequentemente, não se hipoteque, a todo o custo, bens maiores.
3. Outro leitmotiv comum tem sido, em certos círculos, que o que se está ou estaria a passar seria crucialmente uma pandemia do medo que conduziria à paralisia da economia e, caso esta não voltasse a funcionar nos moldes pré-pandémicos, inviabilizaria o fruir da vida. Nesta perspectiva, aquele medo nunca teria passado de um exagerado oráculo de alguns epidemiologistas, virologistas, intensivistas e tutti quanti, com a conivência da Organização Mundial de Saúde (OMS), coadjuvados por obsessivo-compulsivos-coronafóbicos que, burguesmente, poderiam entregar-se à luxúria do teletrabalho ou usufruir de fontes de rendimento fixo ou alternativo. Isto bastaria para desqualificar estes últimos e atacar os primeiros: afinal a ciência tem sido uma fonte de inconsistências insanáveis, que neste domínio nada tem provado. O que aqui se insinua é uma célebre falácia caricatural, aditivada pelo falso dilema neoliberal: desconfinamiento o muerte!
4. As alegações deste tipo rejubilam ao citar, por vezes, a putativa autoridade de Franklin Roosevelt: “A única coisa que devemos temer é o próprio medo!”, aliás truncando esta frase histórica, proferida a 4 de Março de 1933. Numa tradução possível esta é a passagem: “(...) Assim, primeiro que tudo quero afirmar a minha firme convicção de que a única coisa que devemos temer é o próprio medo – aquele terror injustificado [sublinhado meu], sem nome e irracional [sublinhado meu] que paralisa os esforços necessários para converter os recuos em avanços. (...)”
Ora, a primeira pergunta a fazer é: mas que medo?
1) O medo é tipicamente um atalho emocional relevante para nos protegermos, não demorando um tempo excessivo a ponderar motivos a favor e contra determinados cursos de acção. Mas claro que esse atalho, em certos casos, será irracional, no sentido de não se constituir como um atalho infalível, se se defender uma concepção demasiado exigente da racionalidade, o que inclui a racionalidade ou inteligência emocional. Se aquele for o caso, a falibilidade do atalho pode prejudicar pelo menos os genuínos interesses de quem se deixa paralisar por esse medo.
2) Mas também é verdade que, na maioria das situações, esse atalho emocional funciona razoavelmente bem (disso nos fala a história da evolução natural). Temos boas razões para, por exemplo, ter medo de guerras, catástrofes naturais como tsunamis ou pandemias, ideologias racistas ou arbitrariamente discriminatórias, a ignorância em geral, etc..
5. Argumenta-se ainda com falaciosos paliativos: “Colocamos todos a vida em risco. E se a longo prazo estamos todos mortos, há que viver a vida!” A trivialidade, por vezes, tenta impingir algo que não ela mesma. Mas haveria de se viver o quê? A não-vida? Mas, de acordo com aquele ponto de vista, seria injustificada a preocupação de trabalhadores dos sectores primário e secundário, dos transportes públicos, de supermercados, de educadores e professores, dos serviços em geral, em relação a estas “obsessões sanitárias”? Alega-se que há que arriscar a vida, tal como médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde. E, já agora, aos jovens, cuja robustez física é tipicamente reconhecida, que vírus lhes poderia causar o mínimo transtorno? E por que motivo se teria de sobrevalorizar o mito dos assintomáticos na transmissão infecciosa?
6. Por partes. Em primeiro lugar, não é verdade que coloquemos todos a vida em risco ao mesmo nível. Observe-se o caso dos médicos intensivistas do Hospital de Cotugno, em Nápoles. Esta unidade hospitalar, dedicada exclusivamente a tratar a covid-19, pelo menos até finais de Abril, estava e continua a estar na linha da frente no combate à pandemia, dispondo de procedimentos de segurança muito rigorosos, a par de equipamentos de protecção individual de topo. E o que tem acontecido? Não tem tido, pelo menos até há um par de semanas, qualquer desses seus profissionais infectados. Inversamente, em unidades hospitalares no norte de Itália houve vários casos fatais, especialmente entre médicos e enfermeiros. Logo, naquele honroso caso, esses médicos e enfermeiros em ambiente de cuidados intensivos, na prática, provavelmente não têm colocado a sua vida em risco a um nível insustentável, apesar das altas cargas virais a que têm estado submetidos. E, porventura, terão colocado a sua vida e de outros em menor risco do que algumas pessoas, muitas delas jovens, que negligentemente interagem em bando, sem qualquer medida de distanciamento físico ou protecção individual ou hábitos higiénicos, mesmo que isso ocorra numa vulgar praia, numa praça ou numa avenida, devido à “tsunâmica” e irracional atracção pelos corpos, copos, pastilhas, et al.. Como se pode constatar, esta narrativa deveria ser ponderada. Na verdade, por que se negligencia os “invisíveis” como se tudo fosse o mesmo magma, não se diferenciando e sopesando o que há que avaliar cientificamente, como assinalava Filipe Froes?
7. Colocar a vida em risco depende de vários factores como o demonstra ampla bibliografia especializada: 1) susceptibilidade muito variável dos indivíduos ao vírus; 2) cargas virais muito distintas a que os indivíduos estão sujeitos; 3) tipos de protecção utilizados; 4) rigor, ou falta dele, nos procedimentos no uso dos mecanismos de protecção individual e distanciamento físico entre pessoas; 5) necessidade ou não de a colocar em risco; 6) et al.. Logo, não é verdadeira a ideia de que todos colocamos idêntica ou semelhantemente a vida em risco. E mesmo que, por hipótese, isso assim fosse, daí não se seguia, por um passe de mágica, que devesse ser assim. Não é plausível exigir a um doente imunodeprimido que tenha uma exposição ao risco análoga a alguém que não pertença a um grupo de risco. Mas pelo facto de não se pertencer, à partida, a um grupo de risco não deve valer tudo – da “ravepatia” à displicência não exemplar com que se incentivaram certas estratégias de rebanho, presumindo que a imunidade que goza exactamente deste qualificativo seria um dado mais ou menos adquirido, porventura com taxas de infecção relativamente baixas entre a população (até aos 20%) e com danos colaterais em alguns recuperados que seriam quase sempre negligenciáveis. Que tudo isto é inadequadamente injustificado, prova-o com robustez, pelo menos nalguns domínios, o excelente e mais recente artigo de Tomas Puyeo e da sua equipa.
8. Não ter uma perspectiva informada e global sobre a situação que vivemos é contribuir para a bestialização que pode colocar, de um só golpe, a economia (mesmo no modelo pré-pandémico) e especialmente a saúde pública em risco, até porque, no limite e para benefício da discussão, ao colocar-se a economia em risco, mesmo numa visão mainstream e sem dar grande relevo, na prática, a modelos alternativos – como o da economia circular –, isso implicará consequências negativas a nível da saúde pública: não consta que, por exemplo, diminuição salarial ou aumento da taxa de desemprego tenham repercussões neutras, e muito menos positivas, em saúde pública e, como também é expectável, na economia.
9. No caso português, quem presumiu que o “milagre” do confinamento seria análogo ao “milagre” do desconfinamento, nem que para isso tivesse inicialmente de tentar provar que a publicidade não era enganosa, talvez tenha transmitido pelo exemplo, ainda que não intencionalmente, que afinal no Verão, o convívio, a prática desportiva e o ar livre são dos melhores aliados da saúde. Sem o negar, houve publicidade subliminar que pode ter contribuído para quase duplicar o número de casos de jovens infectados, desde 4 de Maio, alguns de forma anti-cool e nada superficial, até porque as práticas de ar livre têm ilustrado alguns “desportos mais radicais”. Em época de incêndios, parece agora, que é imperativo controlar mais este. Assim, não são apenas os mais velhos ou aqueles não jovens que pertencem a grupos de risco que podem enfrentar expressões mais severas da doença. Dado ainda não haver seguro anti-vírico comercializado pelas companhias do ramo, mesmo ainda que raros, alguns dos mais jovens arriscam vir a digladiar-se com sequelas para o resto das suas vidas ou, no limite, com uma ou outra ascensional ou descensional perspectiva de morte. Isto para já não falar dos rostos desconhecidos que normalmente habitam em suas casas. Muito porque o medo racional ou justificado foi suspenso da cidadania pela fulgurante iluminação de certos rebanhos.
10. Da Alemanha com um R(t) de 2.88 a Portugal, em que 15 freguesias da região de Lisboa passam agora a estar sob vigilância mais apertada, não seria tempo, um pouco em contraciclo, de se dar o exemplo e praticar-se um “Cuida-te a ti próprio, e deixa a ‘raveologia’ apenas para Bruno Nogueira”? É que o humor inteligente deve ser compatível com alguma da nossa melhor evidência científica. Na verdade, morrer a gargalhar é uma figura de estilo que não convém transmutar-se num episódio de ressurreição do IEH. E para quem nem sequer tolera falar da questão sanitária, convém assinalar que se pode correr o risco da icónica Champions se vir a deslocalizar, com implicações no expectável retorno económico, e muitíssimo pior, que a extrema-direita populista se vá tornando, pé ante pé, insuportavelmente obesa, devido à exploração de algumas das nossas debilidades colectivas. Para marcar fortemente a diferença, teria sido preferível que, desde o início, pelo menos o outfit prudencial e ético no Campo Pequeno tivesse sugerido outro curso de acção. Por certo, Dombrov, Lukitsch Dombrov, engenheiro de pastelaria de ponta, não denegaria esta tese. E, apesar de tudo, sorrir-se-ia!