Dia 69: é urgente falarmos mais sobre saúde mental
Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, e não só.
Querida Filha,
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Querida Filha,
Tentei começar esta carta 20 vezes, evitando a notícia da morte de Pedro Lima, mas depois de 20 começos, desisti de fugir ao inevitável. Não é dele, mas da reacção das pessoas ao suicídio que te quero falar hoje, sem rodeios. Se num primeiro momento é inevitável escapar-nos um “Mas porquê?”, rapidamente mordemos a língua porque só há uma resposta: o sofrimento mental é tão insuportável, mas tão inimaginavelmente insuportável que para uma mente “enlouquecida”, a morte é a única forma de lhe pôr fim.
Mas, enquanto continuarmos a desvalorizar a depressão e a doença mental, enquanto continuarmos a presumir que quem é amável, sorri e “tem tudo”, não pode ser simultaneamente atormentado pelos piores demónios, não vamos ser capazes nem de nos ajudarmos a nós mesmos, nem de ajudar aqueles que mais amamos, mesmo se é preciso que estejamos conscientes, dolorosamente conscientes de que, por vezes, demasiadas vezes, não podíamos ter feito literalmente nada para os salvar (o que na nossa omnipotência é tão difícil de aceitar).
Amargura-me também esta apropriação das personalidades públicas, como se fossem responsáveis pela “adoração” que lhes dedicamos e nos “devessem” alguma coisa, como se fosse sua obrigação “confessar-nos” os seus problemas, como se de alguma forma nos traíssem quando não agem conforme o guião que para elas escrevemos. Pior, só títulos de jornais a darem a entender que “ter problemas financeiros” e “não construir a casa dos seus sonhos” leva alguém a preferir morrer.
Querida filha, queria desabafar, mas mais do que isso precisava de conversar contigo sobre o que podemos fazer para que as nossas crianças, os meus netos e os netos de todos os avós, cresçam com menos preconceitos contra a doença mental, com mais capacidade de procurar ajuda, sem se sentirem fracos por isso, sem serem descriminados, sem vergonha.
Querida Mãe,
Custa-me imenso começar esta resposta. Não imagino o que a família está a viver e não imagino o que é passar por tudo isso com mais a exposição pública a que, inevitavelmente, aquela família não vai conseguir escapar. Parece impossível não dizer nada e não deixar claro a pessoa extraordinária que era o Pedro Lima, e partilhar todo o amor possível aos que ficaram, mas ao mesmo tempo não nos sentimos no direito de dizer seja o que for sobre esta dor desumana.
Mas, concordo em absoluto consigo. Independentemente deste caso em particular cujos contornos não conhecemos (e espero que continuemos a não conhecer, porque o facto de ser uma figura pública não nos dá direitos sobre a sua intimidade), é urgente falarmos mais sobre saúde mental, tanto mais que os indicadores apontam para um crescimento de perturbações em consequência desta pandemia.
Muitas mães têm-me contado como estão a assistir ao surgimento de sintomas de ansiedade e de transtorno obsessivo-compulsivo nos seus filhos. E é preciso ter em conta que muitas mais serão as que não partilham estes assuntos – principalmente quando envolvem crianças. Primeiro, porque os pais querem salvaguardar a privacidade dos filhos e, depois, porque os julgamentos são tantos e tão injustos, que é inevitável a tentação de esconder! Porque, em pleno século XXI, a doença mental continua a ser um gigante tabu. Evitam falar sobre comportamentos “diferentes da norma” com medo dos rótulos, evitam falar sobre birras mais agressivas com medo dos juízos sobre como “É tudo culpa da falta de disciplina dos pais” (ou o contrário), sobre as fobias que as suas crianças manifestam, fugindo a todo o custo de comentários como “Não me digas que ele ainda tem medo da chuva?”, ou “Isso é só ser mais firme e passa-lhe”. Evitam, a todo o custo, falar sobre o facto de terem que recorrer a medicamentos para se pouparem aos “bitates” constantes, e às alternativas muito mais “naturais” que toda a gente recomenda — como se a maioria dos pais não as tivesse experimentado primeiro, como se a medicação tivesse sido a sua primeira escolha. Como se pais que aceitassem a recomendação médica de um antidepressivo ao seu filho, ou um medicamento para a hiperactividade ou para as insónias incapacitantes, não tivesse já percorrido um caminho de sofrimento e de tudo e mais alguma coisa, antes sequer de chegar a um pedopsiquiatra. Até porque diz um relatório do Conselho Nacional de Saúde, as crianças podem esperar até oito meses por uma consulta de psiquiatria no SNS, e em 2019 o tempo de espera para uma consulta urgente para adultos era de três meses, agora com os constrangimentos da covid-19, nem quero imaginar.
Chega. Chega de falar de ansiedades com aspas. Ou de dizer que “todos temos um bocadinho de obsessivo-compulsivo porque gostamos da sala arrumada”. Não temos. Chega de se desvalorizar o sofrimento das crianças e dos adultos. Chega de se fazer piadas sobre como se é preciso ser louco para ir ao psicólogo. Ou um “fraco” porque se precisa de um antidepressivo. Chega de se exigir nas escolas que todas as crianças cumpram as mesmas expectativas, ao mesmo tempo, apesar das diferentes capacidades ou pior esquecê-las ou tratá-las como incapazes se, por acaso, não conseguem acompanhar o ritmo que alguém ditou que era o “normal”.
Não há saúde que não passe pela saúde mental. Vamos lutar por ela e cuidar da nossa.
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram