A FaceApp voltou. Os riscos são os mesmos?

Há um ano, a FaceApp tornou-se conhecida por mostrar como ficariam os utilizadores quando forem mais velhos. Os problemas com a segurança surgiram quase imediatamente. Agora, a aplicação voltou aos tops, mas a forma como usa os dados parece ter mudado.

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Começou com uma brincadeira nas redes sociais: ver como ficariam os políticos se tivessem nascido com características de outro género. E assim voltou a FaceApp, aplicação que permite manipular imagens de forma a alterar a aparência dos utilizadores – tornando-os mais velhos ou mudando o género. E se nada disto te parece estranho é porque a aplicação já teve um pico de popularidade, no ano passado — envolto em dúvidas sobre a segurança dos dados dos utilizadores.

Desta vez, o que despertou a curiosidade dos utilizadores não foi perceber como seriam uns anos mais velhos, como aconteceu em 2019, mas outra funcionalidade: a de mudança de género, que já existia no ano passado, mas que foi melhorada agora. O salto qualitativo é óbvio: “As fotografias da FaceApp mais recentes são excelentes. São altamente convincentes”, considera Mário Figueiredo, professor catedrático no Instituto Superior Técnico e especialista em machine learning, ao P3. Mas mantêm-se os problemas do passado?

Em 2019, e apesar do seu êxito quase instantâneo, a aplicação causou apreensão junto de utilizadores e especialistas. Afinal, a empresa que desenvolveu a aplicação, a russa Wireless Lab, estava a recolher as informações dos utilizadores e a construir uma base de dados à custa dos filtros que oferecia. Recolhia informações do histórico de navegação do browser, cliques e identificadores de dispositivo, que depois podiam ser partilhados com terceiros.

Agora, três anos volvidos desde a sua criação, a FaceApp volta a estar no top dos downloads da PlayStore (para Android) e App Store (da Apple), onde é disponibilizada de forma gratuita. A sua política de privacidade sofreu pelo menos três alterações nos últimos seis meses: a 10 de Dezembro de 2019, a 10 de Janeiro e a última a 4 de Junho, com alterações de peso desde o ano passado.

Fotos (já) não são guardadas, mas app recolhe informação

Por exemplo, em Agosto de 2019, a política de privacidade da empresa disponível online admitia que as fotografias alteradas eram guardadas (sem especificar onde) e que a aplicação podia usar “cookies e tecnologias semelhantes” para recolher informação sobre como cada utilizador usa a aplicação. Cada dispositivo (como telemóvel ou tablet) que o utilizador usasse para aceder à aplicação tinha um “identificador” próprio com o objectivo de “melhorar, testar e monitorizar a eficácia” do serviço.

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Em 2020, algumas coisas mudaram: entre elas, a garantia de que todas as fotografias ficam apenas guardadas durante um período máximo de 48 horas, após o qual são apagadas. “Não usamos as fotografias que nos dás quando usas a app para outra coisa que não dar-te a funcionalidade de edição”, lê-se na política de privacidade.

“A tecnologia IA [Inteligência Artificial] que usamos nos nossos filtros requer cálculos avançados num servidor, o que torna impossível editar a fotografia num smartphone”, explica a empresa, em resposta ao PÚBLICO. As fotografias que não forem editadas não são enviadas para os servidores – e as editadas são guardadas temporariamente de forma “totalmente anónima” e “encriptada”, garante a empresa. “Não podemos identificar-te, ao teu dispositivo ou qualquer outro tipo de dados com base nas fotografias. Não as usamos para publicidade nem outros usos públicos.”

“Ninguém vê essas fotografias” processadas apenas por computadores, salvaguarda a FaceApp. A aplicação diz ainda não ter acesso a dados como “endereços de e-mail, Apple ID ou contas do Google”.

“Não me pareceu haver nada de muito preocupante” nas políticas de privacidade da empresa, afirma Mário Figueiredo. “Estamos sempre à mercê do facto de quererem manter uma boa reputação. Se começarem a haver muitas queixas má utilização dos dados, pode correr mal para eles e, por isso, têm interesse em manter uma boa reputação — o que não quer dizer que não usem os dados para outras coisas, nomeadamente publicidade.”

Essa continua a ser uma possibilidade e, apesar de a empresa escrever que “não vende informação pessoal”, também admite que pode partilhar os dados do utilizador de forma “anónima, agregada e desidentificada” com terceiros para fins comerciais. “Há aqui uma máxima muito simples que as pessoas devem ter em mente. Se estou a utilizar uma coisa e não estou a pagar por ela, é porque das duas uma: ou eu sou o produto, e isso pode significar que estão a vender a minha atenção, por exemplo, para mostrar publicidade (o produto que está a ser vendido é o meu tempo); ou então são os meus dados”, coloca o professor do IST.

Os dados que a empresa afirma recolher não preocupam o investigador: “Aparentemente eles não recolhem muitos dados pessoais a não ser coisas como onde é que eu estou, que tipo de dispositivo usei, que tipo de browser, que página web visitei antes do site deles. Parece uma coisa relativamente standard”, classifica. Mas hesita em considerar a aplicação completamente segura: “Não meto as minhas mãos no fogo por ela.”

Apesar disso, há aplicações que considera mais perigosas, como a ClearView, usada por várias forças de segurança nos EUA e Austrália e que consegue identificar qualquer pessoa com base numa pesquisa online. “Não é só fazer uma pesquisa por conteúdo, como se faz no Google Images, é [um software] dedicado a encontrar caras e consegue encontrar imagens identificadas daquela pessoa pela Internet”, explica Mário Figueiredo.

Como se melhora esta aplicação?

A verdade é que a aplicação FaceApp continua a somar downloads e as pessoas que a usam obtêm resultados que consideram realistas. O aumento de qualidade das manipulações pode ser explicado pela conjunção de três factores: melhorias nos algoritmos usados pela aplicação, no desempenho do hardware e das bases de dados.

Mário Figueiredo admite não conhecer exactamente as bases de dados da app, mas o processo para as recolher acaba por ser transversal a outras aplicações do género: quando uma empresa começa a ter sucesso, atrai clientes e quantos mais utilizadores tiver, maior a sua base de dados. A partir daí, “melhoram cada vez mais”.

Aumenta “não só a quantidade de dados que eles podem usar para treinar os modelos”, mas também recolhem feedback sobre a qualidade do sistema: “Conseguem saber quando a pessoa que fez uma transformação ficou ou não satisfeita, se guardou a imagem, se tenta fazer outra”, explica o professor. E isso faz com que consigam melhorar cada vez mais.

Deepfakes: o perigo é real? 

Mário Figueiredo é peremptório: a FaceApp é ainda muito limitada no tipo de manipulações de imagem que faz. “Não faz coisas como pegar na imagem de numa pessoa e pô-la noutro sítio, nem ao lado de outra com a qual ela nunca esteve, de forma convincente”, classifica. Por isso será difícil fazerem vídeos falsos com resultados credíveis, como acontece com os deepfakes.

A FaceApp dedica-se a modificar a imagem dos utilizadores, mas apenas com base em imagens estáticas da cara. Algo que já era possível fazer antes, em softwares dedicados à manipulação de imagem, como o Photoshop, mas “a diferença é que a FaceApp permite que qualquer amador o faça em segundos, sem saber nada": “Ela não muda radicalmente aquilo que é possível, [apenas] o democratiza brutalmente.”

A criação de vídeos pode ser o próximo passo para a aplicação, mas neste momento é “um salto muito grande e que não vai acontecer amanhã ou daqui a seis meses”, classifica o professor catedrático. “É duas ordens de grandeza mais difíceis”, não só pela quantidade de dados processados (que é muito superior no caso dos vídeos), mas também porque “os seres humanos são extremamente sensíveis a erros de movimento e de timings em vídeos”. Somos muito sensíveis a movimentos pouco naturais”, realça. Por isso, é “mais difícil criar um vídeo que pareça natural do que criar imagens paradas” – e, especialmente, quando o objectivo é fazer com que se mantenham parecenças suficientes com o vídeo original.

Sobre o futuro dos resultados destas aplicações, é ainda mais difícil fazer projecções. Um destino óbvio é o entretenimento porque “não é novo, misturar actores virtuais e reais”. Mas, neste momento, só há uma que dá como certa: “As previsões são quase garantidamente erradas, há sempre alguma coisa que nos surpreende.”

Notícia actualizada às 15h53 do dia 21 de Junho com a resposta da empresa.