Quarenta e cinco dias com covid-19: a vida de uma família infectada pelo vírus

Foram 45 dias sem sair de casa, com seis pessoas, dos 54 aos 12 anos, a viverem sob o mesmo tecto. Tudo gerava discussões, até o próprio assunto sobre essas mesmas discussões. Esta vivência assemelhou-se a uma junção, relativamente realista, entre os filmes Inception, Alive e Jaws.

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Uma pequena adivinha, cuja resposta se encontra no problema: o que acontece quando se junta, na mesma casa, sem poderem sair durante um mês e meio, seis pessoas, infectadas por um vírus, com vontades e personalidades próprias? A resposta, para quem se viu neste novo modelo de palco de guerra, seria algo parecido com: “O desespero”.

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Uma pequena adivinha, cuja resposta se encontra no problema: o que acontece quando se junta, na mesma casa, sem poderem sair durante um mês e meio, seis pessoas, infectadas por um vírus, com vontades e personalidades próprias? A resposta, para quem se viu neste novo modelo de palco de guerra, seria algo parecido com: “O desespero”.

Claro está que o que vos irei contar é já uma realidade processada. Contudo, os tempos que vivemos foram de um grande deserto, de medos e de uma extrema solidão. Foram 45 dias; seis infectados, um assintomático. Foram 45 dias sem sair de casa, com seis pessoas, dos 54 aos 12 anos, a viverem sob o mesmo tecto. Tudo gerava discussões, até o próprio assunto sobre essas mesmas discussões. O termóstato das sensibilidades estava desregulado, levando a que qualquer crítica fosse vista como uma ofensa avassaladora ao estado do “eu”.

Para uma família que gosta muito da companhia uns dos outros e que a procura activamente, esta vivência assemelhou-se a uma junção, relativamente realista, entre os filmes Inception, Alive e Jaws. No meu caso, o tubarão era eu e as vítimas eram qualquer um dos membros, na altura, para mim, insuportáveis, da minha família. Foi um período de grande exaustão física e emocional, de dúvidas. Foi o tempo em que a covid-19 decidiu habitar a nossa casa.

No início de Março comecei a sentir-me doente. Com um irmão, que chegava a casa no dia seguinte, estudante de Medicina ou, por outras palavras, uma espécie de detective e vítima de todas as patologias que parece estudar, concluímos o lockdown que tinha sido iniciado no dia anterior.

Foi um tempo em que sentimos que não havia Área 51, nem agentes secretos, nem políticos possuidores de informação privilegiada — obviamente que isto não passava de uma sensação. A verdade é que tudo parecia ser tão novo para todos que os comentários inapropriados ou insuficientes dos líderes dos vários países e organizações, e os seus ares de aflição perante a subida do número de infectados pelo mundo, não eram tão díspares assim do tom de surpresa e inquietação com que todos os cidadãos foram recebendo essas mesmas notícias, a partir das suas casas.

Parecíamos estar todos no mesmo mar, sem nunca estarmos no mesmo barco. Sentia-se que o mundo estava em stand-by. Não havia Nova Iorque, Londres, Barcelona ou qualquer outra cidade emocionante “onde tudo acontece”. Todos se encontravam nas suas casas, os espectáculos aconteciam a partir dos nossos ecrãs, falava-se de sentimentos e não do que andávamos a fazer, não havia cidade mais emocionante que outra ou vida mais empolgante que as demais.

Como aparentava ser a primeira pessoa da casa infectada pelo vírus, no dia seguinte a anunciar que estava a desenvolver um certo sintoma, algum membro da minha família, tal qual um percurso de dominó em modo de queda, também dizia começá-lo a sentir. A exaustão era total. Sentimos sintomas antes destes serem declarados como sintomas oficiais da covid-19 pela OMS — isto era o quão às cegas estávamos.

Contudo, apesar dos feitios cavernais que começávamos a revelar, aproveitamos para criar uma série de dinâmicas para levantar a moral destas seis pessoas que estavam a viver este tempo de incertezas, sob o mesmo tecto. Dos quatro irmãos, o mais novo dinamizava aulas de ginástica num ginásio improvisado em casa com sacos de farinha e sacos de arroz como pesos. Fizemos acampamentos na varanda (um privilégio!), com cinema ao “ar livre”; demos passeios pelo telhado, como quem procura fazer de um percurso limitado e habitual, um passeio por uma floresta mágica, nunca antes visitada; simulámos viagens à volta do mundo através da comida, evoluindo nos nossos dotes gastronómicos; jogámos jogos, com direito a grandes discussões; fizemos sessões de cinema com pipocas, gelado e bons debates; fizemos e criámos e reinventamos.

Vivemos com relativa tranquilidade até ao dia em que a nossa mãe começou a piorar. Um dia, acordei a meio da noite com um pressentimento estranho e fui encontrar a minha mãe ofegante, sentada na cama, a tentar respirar, demonstrando já alguma dificuldade. No dia seguinte, depois de muitas tentativas anteriores para ligar à SNS24 para dar baixa dos potenciais casos de infecção na nossa família, conseguimos que nos atendessem. O alívio foi imediato: alguém sabia de nós. Não estávamos sozinhos, no escuro, a combater um vírus cujos próximos passos de ataque eram impossíveis de se prever.

Disseram à nossa mãe para permanecer em casa e aguardar por uma melhoria, uma vez que o medo dos hospitais colapsarem por excesso de doentes, como em Itália, e o risco de contágio pelo vírus — que ainda não tínhamos a certeza de possuir — no hospital era elevado. Chegou, por fim, o dia em que a nossa mãe foi para o hospital. Como não tínhamos máscaras, por estarem esgotadas, os meus irmãos fizeram máscaras de papel de alumínio como complemento à nossa figura só faltava a frase “viemos da Terra, viemos em paz”.

Em casa, iniciámos nessa noite um processo de limpeza e desinfecção do prédio em que vivemos, pois tínhamos receio que, no meio da única saída a que apenas o membro assintomático da família tinha direito para pôr o lixo, pudéssemos ter deixado algum vestígio deste infame vírus. Depois disto, seguiu-se uma noite de maratona em loop de James Bond, enquanto renegávamos qualquer apetite do sono, esperando novas notícias.

Estávamos na última hora da madrugada quando recebemos notícias do hospital. Apesar de estar com o nível de oxigénio em baixo, após receber os cuidados necessários e disponíveis a nossa mãe voltou a casa com a indicação de regressar de imediato, caso apresentasse qualquer sinal de agravamento de saúde.

O pânico que sentimos quando nos despedimos, sem saber qual iria ser o desfecho, foi substituído por um regresso premiado pela eficácia com que a nossa mãe foi acompanhada no hospital e em todo o intenso período que se seguiu a este. Organizámo-nos de modo a preparar a sua chegada e orientámos as tarefas de casa, de modo a cobrir o trabalho de quem começasse a ficar mais doente.

As mensagens e gestos de apoio começaram a chegar, quais candeias de esperança, para quem se sente perdido no meio da escuridão da noite. Desde os médicos, que cuidaram da nossa mãe meticulosamente, tranquilizando os filhos, garantindo-lhes que estava em boas mãos; aos amigos que fizeram todas as compras por nós, durante seis semanas, no supermercado e farmácia, com um carinho e disponibilidade de 24 sobre 24 horas; àqueles que enviavam “mimos”, desde flores a pão fresco, que por vezes chegavam em dias em que o consolo parecia uma realidade mais distante, mas muitíssimo necessária; aos amigos e família que enviaram mensagens do tipo “como posso ser útil?” ou “quero que saibam que estou aqui ao vosso lado”, não exigindo resposta, fazendo-se apenas presentes e disponíveis para o que fosse.

Foi um tempo em que aprendemos a viver na incerteza. A cada novo dia, ouvíamos relatos assustadores, novos sintomas, mais casos de infecção e mortes, possíveis reincidências, mas também mensagens de esperança. A cada dia, fomos aprendendo a reinventarmo-nos enquanto pessoas, enquanto família, aprendendo a deixar de lado as discussões, as desconcordâncias, as dissonâncias, os desesperos com “aquela característica” do outro – mas atenção, aprendendo não significa aprendido.

Assim, fomos trabalhando as nossas fragilidades pessoais e as nossas fragilidades enquanto comunidade, procurando dar novo oxigénio a relações que por vezes parecem estar saturadas pelos desafios de uma realidade que insiste em desafiar e ser exigente. Mas, claro, mais uma vez, atenção: “procurar” não significa encontrar, apenas estar em caminho, estar em processo.

Foram 90 refeições à mesa, todos juntos – umas com grande alegria, outras entre zangas, algumas com um degrade de silêncios. Foram 13 testes à covid-19. Foram ramos de flores feitos de balões e papel, oferecidos a quem em nossa casa estava a precisar. Foi, dentro da nossa impotência em contribuir para a solução de toda esta realidade pandémica, o desenharmos uma “árvore da vida” na parede da sala, com os nomes de todos aqueles que, pelo “nosso mundo” e pelo mundo fora pareciam precisar de ser lembrados e queridos.

Foram cento e muitos passeios pelo telhado, a questionarmo-nos sobre se o que estávamos a viver era mesmo real, sempre acompanhados pela sensação viscosa de vida suspensa. Foram concertos caseiros. E concertos para quem, lá fora, quisesse ouvir. Foram apenas seis saídas de casa, sem nunca sair do carro, todas destinadas aos testes ao vírus. Foi isto e muito mais, que aqui não irei contar, pois não toca só a nossa intimidade, mas a de muitos que nos são queridos. Foi o termos de fazer, não só um, mas vários lutos fechados em casa. Foram todos os abraços impedidos em momentos de perda, enquanto prisioneiros de uma realidade distópica, quando tudo o que era preciso era apenas esse mesmo abraço.

Foram 45 dias fechados em casa, 45 dias em que fomos aprendendo a harmonizar os hábitos uns dos outros; a aceitar que o outro também tem uma história e que aquele “estado insuportável” em que aquela pessoa se encontra se justifica pelo que viveu; em que orientámos os queixumes para o trabalho em equipa – não estando este isento de praguejares irritados; em que pusemos em pausa zangas medíocres, em prol de um bem maior  o outro; um tempo em que crescemos em criatividade compassiva.

Acima de tudo, foram as dezenas, quase centenas, de pessoas, amigos, família, médicos, técnicos de saúde, professores, colegas de trabalho, todos aqueles que foram o nosso único contacto com o mundo exterior e que nos mostraram como se põe em prática o melhor do ser humano. A todos estes, não sabemos dizer nada mais eloquente ou profundo do que o nosso maior obrigada.

No 46.º dia demos, por fim, todos, negativo ao teste à covid-19. Entrámos para os números dos recuperados – nunca me hei-de esquecer. Fomos vítimas de uma pandemia, dentro e fora de casa, que no nosso caso, com muita sorte, mas também luta, não teve a última palavra.

Quando finalmente pudemos sair, fizemo-lo saboreando cada pedaço de vento, cada cara com máscara que nos sorriu com os olhos, cada silêncio na estrada, sem carros, sem pessoas, caminhando com tempo, como nunca antes no meio das nossas vidas agitadas o tínhamos feito. Quando olho para estes dias, já com alguma dificuldade em me lembrar o que senti e até o que vivi, vejo tempos que pediram resiliência, força interior e fé no futuro. Mas, acima de tudo, vejo um tempo que nos fez crescer em humanidade, pois onde há incerteza, há também a grande certeza de que a verdadeira alegria não vem de uma realidade isenta de sofrimento tal não existe mas de saber viver o sofrimento com sentido, abrindo-nos aos outros para cuidarmos e deixarmo-nos cuidar. Onde há amor, não há vazios, nada morre, tudo renasce, multiplica-se e dá fruto.