Pessoas sem abrigo: um novo alerta
Lisboa fez um investimento de cerca de três milhões de euros por ano. Não podemos exigir aos municípios pequenos e médios deste país que façam, por si só, o financiamento de uma estratégia nacional tão importante. É tempo de o Governo compreender o seu papel nesta resposta urgente aos sem abrigo.
A suspensão de grande parte da vida económica e social do país durante largas semanas teve consequências dramáticas para muita gente. Milhares de famílias perderam rendimento porque ficaram em lay-off, porque trabalham a recibos verdes ou porque não tinham contrato e foram despedidas. O leque de situações multiplica-se a cada dia que passa, com a acumulação de problemas ao longo do tempo.
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A suspensão de grande parte da vida económica e social do país durante largas semanas teve consequências dramáticas para muita gente. Milhares de famílias perderam rendimento porque ficaram em lay-off, porque trabalham a recibos verdes ou porque não tinham contrato e foram despedidas. O leque de situações multiplica-se a cada dia que passa, com a acumulação de problemas ao longo do tempo.
Hoje já temos a percepção de que o número de pessoas a pernoitar nas ruas de Lisboa e Porto aumentou substancialmente. Em Lisboa, a câmara abriu logo em Março quatro centros de acolhimento por onde já passaram mais de 500 pessoas, muitas delas tendo perdido a casa já em consequência da pandemia. Cair na rua agora é um processo muito rápido: perde-se o emprego precário ou informal, não se tem acesso a apoios relevantes nem como pagar renda, perde-se a casa. Há pois hoje uma “nova rua”.
O que estamos a ver são as consequências de décadas de desinvestimento em habitação pública, em desregulação do mercado de arrendamento. São décadas de desinvestimento em respostas públicas de inclusão social, em desmantelamento de direitos laborais que garantiam estabilidade e segurança na vida das pessoas. Sem estabilidade, empurraram-se milhares de pessoas para situações tão precárias que não conseguem resistir ao mínimo embate económico.
A Câmara Municipal de Lisboa dá uma resposta essencial e que pretende ir além da simples assistência. Nos quatro centros de acolhimento, existem atividades físicas e culturais, existem assembleias participativas, respostas inovadoras para consumidores de substâncias, pessoas que iniciam tratamento da metadona, assim como outras respostas em saúde mental e despiste de doenças contagiosas. Ali, mais que uma resposta de emergência por causa de um vírus, procura-se apoiar a reconstrução de vidas difíceis.
Não pretendo dizer que os problemas estão todos resolvidos ou que temos melhores intenções que outras câmaras. Lisboa tem a melhor resposta e isso pode ser um problema pelo desequilíbrio que cria face ao resto do país. O facto é que Lisboa recebe hoje pessoas em situação de sem abrigo de municípios de todo o país, de Gaia a Beja, de Portimão a Bragança, procurando junto de nós uma resposta sólida e a hipótese de conseguir uma cama e alimentação. Orgulhamo-nos de ter proporcionado isso, mas também habitação ou emprego a 150 pessoas. Temos o objetivo de, até ao final do ano, alojar 380 pessoas em casas “housing first”, sistema em que o acompanhamento para reintegração social decorre a partir da resposta ao problema habitacional. Nesse prazo, queremos incluir 200 pessoas em projetos de emprego apoiado, feitos à medida para quem reconstrói aos poucos a sua vida. Trata-se de serviço público: integrar para garantir direitos e devolver autonomia.
Identificamos então três problemas. Por um lado, as autarquias não têm suficiente capacidade para responder à crise social da pandemia; por outro lado, isto sobrecarrega a resposta de Lisboa, que acaba por responder a quem vem para cá procurar ajuda; finalmente, falta uma resposta articulada, metropolitana e regional. Para estes três problemas, considero que precisamos de uma solução global e articulada e esta não pode, portanto, ser dada somente por Lisboa.
O Governo holandês, por exemplo, distribuiu cerca de 200 milhões de euros entre as principais autarquias para desenvolver respostas de “housing first” em todo o país. Garantir uma casa, acompanhamento social e psicológico para salvar vidas.
Em Portugal, a estratégia nacional para responder às pessoas em situação de sem abrigo (ENIPSSA), um programa governamental que pretende responder ao desígnio do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa de retirar todas as pessoas da rua até 2023, tem um enorme obstáculo. Não tem recursos suficientes. A multiplicação de respostas solidárias locais – como a do coletivo Seara, recentemente despejado pela força de modo injustificável, ou como outras nos concelhos de Sintra e Amadora – é importante e sublinha a falta de investimento na resposta à crescente população sem abrigo.
Lisboa fez um investimento de cerca de três milhões de euros por ano. Não podemos exigir aos municípios pequenos e médios deste país que façam, por si só, o financiamento de uma estratégia nacional tão importante. É tempo de o Governo compreender o seu papel nesta resposta urgente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico