Sobre estátuas e valores
Se é certo que as estátuas são imagens de uma história que não podemos recusar nem alterar, mas sim olhar de um ponto de vista crítico e pedagógico, também é verdade que a sua construção e/ou manutenção exige o consentimento da população.
As estátuas ou monumentos, por norma, são erguidas em reconhecimento a algo ou a alguém pela sua contribuição para um mundo melhor (ou pelo menos uma porção dele). Contudo, aquilo que é um mundo melhor é variável de geração para geração, de acordo com aquilo que são os seus valores e os seus parâmetros relativamente ao que é uma vida boa, e por isso as estátuas do passado poder-se-ão tornar obsoletas se deixarem de encaixar ou se forem contra os valores das gerações actuais.
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As estátuas ou monumentos, por norma, são erguidas em reconhecimento a algo ou a alguém pela sua contribuição para um mundo melhor (ou pelo menos uma porção dele). Contudo, aquilo que é um mundo melhor é variável de geração para geração, de acordo com aquilo que são os seus valores e os seus parâmetros relativamente ao que é uma vida boa, e por isso as estátuas do passado poder-se-ão tornar obsoletas se deixarem de encaixar ou se forem contra os valores das gerações actuais.
Há, contudo, valores que, pela sua capacidade de equilibrar e conciliar grupos de interesse, são transversais a várias gerações, nomeadamente a democracia, a liberdade individual até onde começa a liberdade do outro, a igualdade de direitos fundamentais, a prosperidade, entre outros, o que explica o porquê de várias estátuas ou monumentos terem resistido às mudanças dos tempos, conservando a sua dignidade inicial.
Winston Churchill, uma das figuras mais imponentes do século XX — e, diga-se de passagem, mais polémicas — é tema de confronto entre grupos de interesse precisamente porque põe em causa esses valores com declarações de teor racista como esta que fez em 1937, já que apesar de ser um acérrimo defensor da democracia, dá a impressão de não conceber que todos tenham uma participação igual nesse regime, atentando contra um sistema de liberdades individuais:
“Não admito, por exemplo, que uma grande injustiça tenha sido cometida contra os peles-vermelhas da América ou os negros (aborígenes) da Austrália. Não admito que uma injustiça tenha sido cometida contra essa gente pelo facto de que uma raça mais forte, uma raça de qualidade mais elevada, uma raça com mais experiência do mundo, digamos assim, tenha chegado e tomado o lugar deles.”.
Ora, com todo o tumulto mundial resultante da morte de George Floyd às mãos da polícia — a ponta de um icebergue com uma densidade histórica e racista inescrutável — a estátua de um homem que salvou a Europa do fascismo e do nazismo e que assumiu que a democracia, embora sendo o pior dos regimes políticos, é o melhor regime possível, sofre ameaças de vandalismo. No sentido de a proteger, e porque a tradição democrática inglesa assim o exige, a cidade de Londres, enquanto os protestos anti-racistas avançam pela cidade, cobriu a estátua de Winston Churchill com tábuas de madeira, evitando que fosse destruída e que as memórias de um dos salvadores da Europa contra um regime totalitário e fascistas caíssem em falso. E agora, mais que nunca, a história que está associada ao memorial de Winston Churchill não pode ser esquecida, porque num regime autoritário e fascizante, onde a democracia é corrompida quer pelas más intenções dos líderes quer pelo descrédito dos eleitores, a discussão sobre os direitos das minorias desaparece, tal como os seus defensores e os próprios cidadãos que delas fazem parte.
O Szoborpark, em Budapeste, foi o sítio escolhido para reunir as estátuas erguidas em honra ao poder soviético que foram retiradas das ruas húngaras depois da queda do regime comunista nesse mesmo país, sendo agora um parque-museu que os admiradores de história podem visitar para relembrar os líderes soviéticos e todo o passado que lhes é inerente.
Este parque é relevante pela iniciativa que deu azo à sua construção e pelo propósito que serve — a própria administração da cidade de Budapeste lançou a concurso público a construção de uma infra-estrutura que permitisse preservar as estátuas e, necessariamente, as memórias de um regime que lançou a Hungria numa onda de autocracia, repressão, violência, tortura e fome, desde o fim da Segunda Guerra Mundial até à queda do muro de Berlim.
O Szoborpark é um exemplo claro de uma verdadeira postura crítica relativamente a um pedaço de história nacional que muitos patriotas ainda relembram como a época que mais vergonha traz ao seu país pelos actos abomináveis que foram praticados contra a sua nação, mas que tem necessariamente de ser recordado para afastar o consentimento por parte dos cidadãos relativamente a regimes que prometem uma salvação quase divina que acabe com o desespero civil relativamente a uma qualquer crise. E que acabam por ser extremistas, discriminatórios e repressivos, não só relativamente à problemática que identificaram como sendo causadora da crise, mas também para com aqueles que permitiram a sua ascensão.
Se é certo que as estátuas são imagens de uma história que não podemos recusar nem alterar, mas sim olhar de um ponto de vista crítico e pedagógico, também é verdade que a sua construção e/ou manutenção exige o consentimento da população, cujos valores e preferência são mutáveis de geração em geração. No entanto, e porque nós escolhemos que estátuas pretendemos manter e respeitar, é imperativo relembrar o legado que as figuras que relembram nos deixaram e fazer o devido balanço dos custos e benefícios de as derrubar, podendo optar por esquecer a história e incorrendo na possibilidade de a voltar a repetir, ou, como fizeram os habitantes de Budapeste, castigar a história, isolando-a e colocando-a em montra, permitindo que seja revisitada e criticada por todos.