Trabalho e covid-19: a realidade errada das “contas certas”

Não surpreende que a covid-19 viesse como veio (e mais virá) a revelar muito do real da realidade laboral e social no mínimo psicossocialmente “suavizado”, por essas “contas certas”.

‘Contas certas’, realidade errada”, é o título de um artigo, no PÚBLICO de 14 de Junho, assinado por Vicente Jorge Silva (VJS).

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‘Contas certas’, realidade errada”, é o título de um artigo, no PÚBLICO de 14 de Junho, assinado por Vicente Jorge Silva (VJS).

Apesar de, como leitor assíduo desde o primeiro número (30 anos acabados de fazer em 5 de Março), entender que VJS, tendo sido o primeiro, foi também um dos melhores directores do PÚBLICO, o autor deste texto não está sempre de acordo com o que este excelente jornalista escreve. Mas aqui, este seu artigo de domingo, subscreve-o. Ainda que por um prisma mais específico do que aquele, mais de cariz de “política pura” que VJS lhe confere.

Portugal é, actualmente, o segundo país da União Europeia onde, diariamente (pelo menos nas últimas duas semanas), mais têm aumentado os casos de infecção covid-19. Dir-se-á que é apenas um “surto” localizado. Acontece que a localização desse surto não é apenas de ordem territorial (região de Lisboa e Vale do Tejo) mas, essencialmente, de ordem social.

À maior parte desses casos, se não logo no contágio inicial, pelo menos na disseminação da infecção, estão associadas as condições em que as pessoas trabalham em determinadas ou mesmo sectores de actividade (construção civil, trabalho temporário e outros) bem como as condições em que vivem (bairros da periferia da grande cidade, com degradadas condições de habitação e transportes massificados, quer públicos, quer fornecidos pelos empregadores [1]).
Tanto mais que, não há muita necessidade de explicar e muito menos de fundamentar, as condições em que as pessoas vivem (habitacionais, e não só, alimentares, de higiene, saúde, familiares, etc.), se é que não estão no desemprego (que, aliás – algo muito sonegado , pode ser muito mais mental e fisicamente penoso do que o trabalho propriamente dito), decorrem essencialmente das condições em que trabalham (salários baixos ou dignos, precariedade ou segurança no emprego ou trabalho, sujeitos aos riscos profissionais ou com garantia de segurança e saúde no trabalho, enfim, usufruírem ou não no trabalho de dignidade).

Volta-se aqui, relevando a realidade da centralidade humana e social do trabalho, à metáfora de Yves Clot, um psicólogo do trabalho francês: “O trabalho tem um braço longo”. Para o bem e para o mal. Para o mal, agora, com o relacionamento com a covid-19 e repercussões desta. Como se está a ver.
A saúde (a saúde pública e a saúde individual) é algo eminentemente social. E daí que não surpreende que a covid-19 (como, aliás, qualquer outra doença) viesse, como veio (e com certeza mais virá) a destapar a realidade social do manto diáfano-financeiro das “contas certas”. E, mais especificamente, viesse como veio (e mais virá) a revelar muito do real da realidade laboral e social no mínimo psicossocialmente “suavizado”, por essas “contas certas”.

Afinal, mais especificamente, a covid-19, tem que se escrever por mais que custe ler e não obstante se reconheça o quanto nisso também pode haver de económica e politicamente positivo, veio destapar a realidade humana e social do trabalho do “manto diáfano” do êxito (euro)financeiro e (euro)mercantil das “contas certas”, se bem que se admita a coerência com ter-se do Trabalho, Uma Visão de Mercado (Mário Centeno, FFMS, 2011).

Acabou por vir mostrar mais o real (do) trabalho, o qual, porque realmente consubstanciando-se nas pessoas que trabalham, é algo onde necessariamente tem que imperar uma visão tendo-o como “realmente humano” (preâmbulo da Constituição da OIT, 1919), algo que “não é uma mercadoria” (actual primeiro princípio fundamental da Constituição da Organização Internacional do Trabalho – OIT , introduzido em 10/05/1944 pela Declaração de Filadélfia).
Então, alguma coisa resta perguntar (passe a presunção, talvez desta e doutras inerentes perguntas derivem propostas, quiçá coerentes acções…), ainda que relativizando esse questionamento com o reconhecimento das dificuldades económicas, sociais e políticas implicadas pelas medidas (em geral, sanitariamente adequadas e necessárias) de contenção e mitigação da covid-19.

Resta perguntar se, no essencial, designadamente quanto à qualidade do trabalho (mais “certeza” laboral e social da legislação em vigor bem como do enquadramento institucional, mais justiça social, mais segurança do emprego, salários dignos porque melhores e mais justos, melhores condições de segurança e saúde do trabalho, enfim, lembra-nos também a OIT [2], “trabalho digno”), na “retoma da normalidade” se vai manter a (mesma) anormalidade laboral e, muito daí, económico-social.

Em síntese, voltando ao tom do referido artigo de VJS, resta perguntar se, quanto ao trabalho como pessoas que trabalham, se vai manter a “realidade errada”.

[1] PÚBLICO, 03/04/2020 -“Coronavírus e trabalho: não é exigível o que pode ser mortal” - https://www.publico.pt/2020/04/03/opiniao/opiniao/coronavirus-trabalho-nao-exigivel-mortal-1910713

[2] https://www.dgert.gov.pt/normas-da-oit-e-covid-19-coronavirus-esclarecimentos-oit