Sem recuperar Schengen, não há fundo que valha
Schengen é de tal maneira fundamental para a Europa que quase pode dizer-se que é um sofisticado sismógrafo das suas crises.
1. Recordo-me de, no longínquo ano de 1981, ter visitado de carro, com os meus pais e irmãos, o Benelux. No dia em que saímos da Bélgica para a Holanda, andámos larguíssimos quilómetros em solo holandês sem que disso tivéssemos dado conta. Ali já não existiam fronteiras físicas nem controlos de fronteira. Ficámos “pasmos”! “Pasmo” é mesmo o termo. Como era possível sair de um país e entrar noutro, sem que houvéssemos sido parados, sem que tivéssemos de apresentar o passaporte, sem que devêssemos preencher meia dúzia de papéis, sem que nos deparássemos com algum controlo policial que podia mesmo chegar a operações de revista do carro ou até das pessoas, sem que fôssemos confrontados com múltiplas perguntas sobre destinos, pernoitas e intenções? Era tal a expectativa de encontrar um posto fronteiriço, com as suas faixas dedicadas e cancelas móveis, com o aparato policial e militar, com o departamento da alfândega e o quiosque dos câmbios, que nem demos pelas singelas placas que anunciavam a passagem da linha de fronteira.
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1. Recordo-me de, no longínquo ano de 1981, ter visitado de carro, com os meus pais e irmãos, o Benelux. No dia em que saímos da Bélgica para a Holanda, andámos larguíssimos quilómetros em solo holandês sem que disso tivéssemos dado conta. Ali já não existiam fronteiras físicas nem controlos de fronteira. Ficámos “pasmos”! “Pasmo” é mesmo o termo. Como era possível sair de um país e entrar noutro, sem que houvéssemos sido parados, sem que tivéssemos de apresentar o passaporte, sem que devêssemos preencher meia dúzia de papéis, sem que nos deparássemos com algum controlo policial que podia mesmo chegar a operações de revista do carro ou até das pessoas, sem que fôssemos confrontados com múltiplas perguntas sobre destinos, pernoitas e intenções? Era tal a expectativa de encontrar um posto fronteiriço, com as suas faixas dedicadas e cancelas móveis, com o aparato policial e militar, com o departamento da alfândega e o quiosque dos câmbios, que nem demos pelas singelas placas que anunciavam a passagem da linha de fronteira.
Deixáramos Antuérpia e chegáramos a Roterdão quase sem dar por isso. Para quem estava nos primeiros anos da adolescência, este trânsito livre de um Estado para o outro era surpreendente, estranho e mágico. Não estávamos de todo preparados. Era um mundo de muros que ruía. Afinal, havia mesmo “jogos sem fronteiras” fora da televisão. Enfim, o que se dizia sobre a então muito adivinhada liberdade livre e libertina dos holandeses era capaz de ser verdade.
Nunca mais esquecemos aquela experiência. Tinha sido tão importante como a modernidade do Atomium, a riqueza medieval de Bruges, o Carlos V de Gante ou os diamantes de Antuérpia. Ou como o Museu Van Gogh, o Rijsksmuseum, a casa de Anne Frank, a sinagoga portuguesa, as montras nuas do bairro vermelho, os punks e as suas cristas que enchiam o Dam. No regresso, para as noites de família e de amigos, cheias de “slides” e fotografias, aquela era uma das grandes novas: “cruzámos a fronteira sem dar conta, porque não havia fronteira.”
Nem jovens nem adultos perceberam o alcance político da novidade; no fundo, tratamo-la como mais uma singularidade holandesa. E nunca mais a questionámos até ao dia em que alguém nos falou de Schengen, já bem depois da sua assinatura, ocorrida na mesma altura em que Portugal e Espanha assinaram os tratados de adesão à CEE. O acordo de Schengen fez neste domingo 35 anos.
2. O espaço Schengen é um dos grandes milagres da União Europeia, pois ao mesmo tempo que representa um pilar jurídico fundamental, indispensável ao funcionamento da União, é identificado pelos cidadãos como uma das liberdades “europeias” mais palpáveis de que podem fruir. A liberdade de circulação que ele representa não é apenas um princípio jurídico ou uma comodidade prática; antes congraça um verdadeiro marco da identidade constitucional da União. Uma União privada das liberdades de Schengen é uma união constitucionalmente amputada. Não vale a pena perder muito tempo com grandes considerandos; tendo chegado onde chegámos, há uma adquirido evidente: não há Europa sem Schengen.
3. O alcance político (e constitucional) do avanço para Schengen é colossal. Por um lado, os Estados que dele fazem parte prescindiram de um dos sinais exteriores mais aparatosos da sua soberania. Por outro lado, depositaram uma enorme confiança nos seus congéneres e nos mecanismos e instituições da União para cuidarem das chamadas fronteiras externas. Cada Estado aceitou confiar nos restantes como se fossem fiéis depositários do seu “território”. E sabemos bem que os Estados, enquanto construção política da modernidade, têm no território um dos seus elementos essenciais, um dos seus momentos definidores. A disposição e disponibilidade para partilhar esse poder – esse poder inseparável da condição ou até da natureza de “Estado” – é, sem dúvida, um milagre político: um dos milagres políticos da União.
4. Não é todavia por acaso que se está a dar tanta atenção a uma data esdrúxula, que, de outro modo, mereceria uma simples menção de rodapé: a comemoração dos 35 anos do Acordo (30 da Convenção e 25 da entrada em vigor). Com efeito, a eclosão da pandemia da covid-19 levou à suspensão generalizada e unilateral de todo o espaço Schengen enquanto espaço de liberdade de circulação interna na União. Foi a primeira vez que tal aconteceu na história do espaço Schengen e a retoma da integral normalidade de funcionamento desse espaço antolha-se difícil e problemática. Já muitas vezes – vezes demais, diga-se de passagem – tinha sido accionada a suspensão temporária deste sistema de liberdades, ora com razão, ora com abuso. Mas uma suspensão operada por larga parte dos Estados, ainda por cima, de modo puramente unilateral, descoordenado e não articulado, consubstancia um golpe profundo nas liberdades e uma ferida grave na coesão da União.
5. Schengen é de tal maneira fundamental para a Europa que quase pode dizer-se que é um sofisticado sismógrafo das suas crises. Se pensarmos como os atentados terroristas – a começar no 11 de Setembro e depois nas suas intermináveis sequelas –, logo nos apercebemos dos fortíssimos impactos sobre as fronteiras aéreas e terrestres. Se lembrarmos a crise migratória, ela representa uma crise geneticamente “schenguiana”, projectada sobre as fronteiras externas, sobre as políticas de asilo e migração e até sobre as fronteiras internas. Se nos fixarmos no “Brexit”, ele tem como causa próxima a liberdade de circulação, mesmo sem Schengen. Se contemplarmos a pandemia, ela paralisou completamente a liberdade de circulação.
6. Andamos todos de olhos, orelhas e mãos postas nos fundos de recuperação e nos enormes avanços político-económicos que a União pode (e deve) fazer. Mas há uma condição sine qua non de qualquer um desses avanços, que não haja nenhum recuo. Nenhum recuo em Schengen. Sem isso, não há fundos que nos possam valer.
Sim e Não
SIM Comissão Europeia. Diante da recusa dos Estados (Portugal incluído) em se coordenarem quanto à reabertura, a CE lançou, tal como eu tinha sugerido, um portal com toda informação para o espaço europeu.
SIM Padre António Vieira. Condenando todo o racismo, tem de verberar-se o vandalismo oportunista. Que o ataque sirva para redescobrir aquele que, com Camões e Pessoa, é um dos três grandes da língua portuguesa.