Saudades da vida de antes
E antes que cheguem os cavaleiros do Apocalipse a dizer que os meus filhos não pediram para nascer e que, se não queria ser mãe, devia ter laqueado as trompas, deixem-me já fazer o disclaimer habitual: a vida, numa perspectiva global, é melhor com filhos.
É costume dizer-se que quando nasce um bebé nasce uma mãe. Aquilo que nunca se diz é que a mãe que nasce não faz desaparecer a mulher que já existia, mesmo que, numa fase inicial, a possa deixar um bocadinho adormecida. E o que é que quero dizer com isto? Que a esmagadora maioria de nós, muitas (mas mesmo muitas) vezes, vai sentir saudades daquilo que era antes.
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É costume dizer-se que quando nasce um bebé nasce uma mãe. Aquilo que nunca se diz é que a mãe que nasce não faz desaparecer a mulher que já existia, mesmo que, numa fase inicial, a possa deixar um bocadinho adormecida. E o que é que quero dizer com isto? Que a esmagadora maioria de nós, muitas (mas mesmo muitas) vezes, vai sentir saudades daquilo que era antes.
E essas saudades podem manifestar-se de mil formas diferentes. Podem ser só pequenas coisas, como poder ficar na cama até mais tarde a um sábado de manhã; jantar chá e torradas só porque não nos apetece fazer nada; ou vegetar em frente à televisão na companhia de uma mantinha numa tarde chuvosa de domingo. Por outro lado, podem ser coisas maiores. Coisas assustadoramente maiores.
Eu, por exemplo, sinto muitas saudades de viver sem o peso de ser totalmente responsável por outras pessoas. É que, às vezes, esse peso é tão grande que chega a oprimir-me. Em termos profissionais é essa responsabilidade que me impede de dar o salto e arriscar, que me faz pensar duas, dez ou cem vezes sempre que equaciono trocar o certo pelo incerto. Às vezes sinto que essa responsabilidade é quase uma prisão.
E antes que cheguem os cavaleiros do Apocalipse a dizer que os meus filhos não pediram para nascer e que, se não queria ser mãe, devia ter laqueado as trompas, deixem-me já fazer o disclaimer habitual: a vida, numa perspectiva global, é melhor com filhos e todos os sacrifícios que fazemos por eles são mais que justificados. Dizer isto não invalida, contudo, que a chegada deles torne algumas coisas mais difíceis. Se os filhos são o melhor da vida? Sim. Se tudo fica melhor com filhos? Não.
Lembro-me perfeitamente de uma madrugada, depois de duas semanas consecutivas de noites em claro, em que o meu filho João, na altura com um mês, chorava sem parar. Não era fome, não era frio, não pareciam ser cólicas… Era um choro sem causa aparente e impossível de parar. Nessa madrugada, no meio do desespero, disse pela primeira vez em voz alta as palavras que já meia dúzia de vezes me tinham vindo à mente e, olhando para o meu marido, perguntei: “Mas o que raio é que fui fazer com a minha vida?”
Depois de dizer isto chorei muito, senti-me a pior mãe da história, praticamente indigna de olhar para os meus filhos. E o parasita materno chamado culpa colou-se a mim quase ao ponto da loucura. Foram precisos passar muitos mais meses e muitas mais noites em claro para perceber que desabafos como aquele são coisas que acontecem. Acontecem a mães que estão cansadas, que têm poucas ajudas, que têm uma carga tão grande em cima que quase não encontram espaço para si mesmas e que, nesses momentos, têm uma saudade gigante do tempo em que eram apenas filhas.
Hoje em dia consigo perfeitamente dizer que, às vezes, tenho saudades da vida de antes sem me sentir culpada. E se há alturas em que as coisas até vão fluindo em velocidade de cruzeiro, outras há em que só me apetecia ter outra vez 25 anos e viver despreocupada. Se isso faz de mim uma má mãe? Não creio. Faz de mim humana. E imperfeita, pois claro.
Na semana que passou fui jantar um dia a casa dos meus pais e, como sempre que lá vou, voltei ao quarto da minha adolescência. Enquanto olhava com atenção para as fotografias no móvel da escrivaninha, esse ícone dos anos 1990, pensava que, muitas vezes, ainda me vejo como naqueles retratos. E depois lembro-me que já sou mãe, o meu coração aquece quando ouço os passinhos deles a correr pelo corredor e despeço-me da Carmen adolescente e jovem adulta. Mas as saudades? Essas hão-de estar sempre comigo.
E não compreendo, não compreendo mesmo, porque é que ainda hoje, para tantas e tantas mães, continua a ser tão difícil assumir isto.