Histórias da Construção Europeia [3/6]: 9 de Maio de 1950, o primeiro passo para a União da Europa

Não era apenas a Administração americana que favorecia uma união europeia. O próprio Churchill partilhou da mesma convicção e por ela continuou a militar a seguir à Guerra. No entanto, o princípio de solução só viria mais tarde, lentamente e aos soluços. Terceiro capítulo da série “Histórias da Construção Europeia”, do economista José Veiga Sarmento, a partir das memórias de Jean Monnet.

Em 9 de Maio de 1950, Robert Schuman, ministro dos Negócios Estrangeiros de França, faz um discurso que lança um projecto de união da Europa, projecto que, ao contrário de várias outras iniciativas, vai, desta vez, ser bem-sucedido. Mas o discurso de Schuman, que ficou para a História como o momento fundador da União Europeia, não foi escrito por Schuman, nem por ninguém do seu gabinete, mas sim por Jean Monnet e dois dos seus colaboradores.

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Em 9 de Maio de 1950, Robert Schuman, ministro dos Negócios Estrangeiros de França, faz um discurso que lança um projecto de união da Europa, projecto que, ao contrário de várias outras iniciativas, vai, desta vez, ser bem-sucedido. Mas o discurso de Schuman, que ficou para a História como o momento fundador da União Europeia, não foi escrito por Schuman, nem por ninguém do seu gabinete, mas sim por Jean Monnet e dois dos seus colaboradores.

Monnet era, na altura, o responsável pelo Comissariado do Plano em França, entidade por si desenhada para promover a recuperação no pós-Guerra e que obteve, em Janeiro de 1946, o apoio do General De Gaulle para a aprovação do decreto da sua constituição. O Comissariado do Plano foi essencialmente um exercício de reinvenção da administração pública francesa, que irá marcar, nas décadas seguintes, não só a governação da França, como também a governação de muitos outros países. Face a uma economia destruída pela Guerra, Monnet, que na Libertação não quis entrar nem para o Governo nem para nenhum partido político, tinha a convicção de que era necessário organizar o investimento para que o desenvolvimento fosse auto-sustentável no médio prazo. Era necessário um Plano, não do tipo soviético, mas um Plano que orientasse a acção do Estado e das empresas, um plano que definisse prioridades, mas que reflectisse também a ambição dos empresários e dos sindicatos. Um ano de trabalho e o primeiro plano surgiu, tendo sido aprovado por todos os partidos que participavam no Governo, incluindo os comunistas. O desenvolvimento da França das décadas seguintes foi, em grande medida, o resultado deste exercício.

Mas para investir era preciso capital, algo que não existia em França. Monnet leva o primeiro-ministro da altura, Léon Blum (De Gaulle demitiu-se logo no início de 1946), a Washington para negociar um empréstimo. O resultado obtido foi o acordo Blum-Byrnes, que estipulava o perdão de 2,8 mil milhões de dólares – cerca de 75% da dívida total francesa aos Estados Unidos – e a concessão de um empréstimo imediato de 650 milhões. Pouco tempo depois, virão mais 2,3 mil milhões de subsídios com o Plano Marshall.

A reconstrução da Europa vai rapidamente defrontar-se, mais uma vez, com a problemática do acesso às matérias-primas essenciais, o carvão e o aço, localizadas maioritariamente na Alemanha e na Polónia. A França, na partilha da ocupação militar dos Aliados, vai primeiro tentar controlar a região mineira do Sarre, num remake dos anos 20 a seguir à Primeira Guerra Mundial, e cujo resultado desastroso, de humilhação do povo alemão, tão bem conhecemos. A questão para a França era, outra vez, que sem o aço, o seu desenvolvimento estava comprometido, ao contrário do que sucederia na Alemanha, que poderia reconstruir o seu poderio industrial e, a seguir, o militar. Ora Monnet acreditava que, para haver paz na Europa, era necessário, em primeiro lugar, resolver o acesso ao carvão e ao aço, caso contrário, a história repetir-se-ia uma vez mais. Para Monnet, o facto de existirem interesses diferentes, ou mesmo contraditórios, não era em si o mais importante porque a realidade é mesmo assim. O que era necessário era encontrar forma de gerir em comum esses diferentes interesses.

Com a ajuda dos seus colaboradores mais directos, Monnet vai elaborar um documento que seria uma proposta de Tratado para a constituição de uma alta autoridade que controlaria a produção de carvão e de aço na Europa. Esta entidade seria constituída pela França e pela Alemanha, embora aberta a outros países democráticos da Europa. A Alta Autoridade fixaria as quotas e regularia os preços, e o resultado financeiro que apurasse teria como destino um Fundo de Reconversão.

Do texto inicial constava a seguinte frase:

“Esta proposta tem um alcance político essencial: abrir nas muralhas das soberanias nacionais uma brecha suficientemente pequena para poder agregar consensos, mas suficientemente grande para levar os Estados no sentido da unidade necessária à Paz.”

Esta frase seria retirada da versão final da proposta de Tratado, tendo-se mantido a afirmação de que, da acção desta nova entidade, deveria resultar um Mercado Comum.

Havia um pequeno detalhe: o Governo francês desconhecia por completo este documento que vai acabar por ser entregue a Schuman no momento em que este partia de comboio para um fim-de-semana de reflexão. Monnet sabia que os governos aliados tinham delegado no Governo francês a apresentação de uma proposta sobre como evoluiria a relação com a Alemanha, e Schuman deveria submeter à apreciação dos Aliados propostas nesse sentido em Londres, daí a uns dias, a 10 de Maio. Monnet sabia também que Schuman andava à procura de ideias, pelo que o seu trabalho, apesar de não solicitado, era, de facto, a oferta mais oportuna que Schuman poderia ter recebido. No regresso do fim-de-semana, Schuman faz saber a Monnet que adere completamente ao projecto.

Nos dias que antecederam a partida de Schuman para a Conferência dos Aliados em Londres, foi necessário que Schuman convencesse o Governo, e em particular o primeiro-ministro Bidault, a aderir ao projecto. Mas, condição essencial, faltava a concordância dos visados, os alemães, pelo que era necessário obter, ainda que secretamente, o acordo de Adenauer. O que vai acontecer nas horas seguintes é um verdadeiro filme de Missão Impossível, pelo que incito os leitores a fazerem o percurso da documentação existente, em particular das Memórias de Jean Monnet. Vale mesmo a pena.

A aprovação do documento teria de ser feita no Conselho de Ministros francês de 9 de Maio, mas na condição de já haver o acordo do chanceler alemão. Para preencher esta condição, um emissário de Schuman apanha na véspera o comboio para Bona, onde iria decorrer uma reunião marcada de urgência com o chefe de gabinete de Adenauer para dia 9 de manhã. O emissário, ao chegar, comunica que traz uma proposta secreta do Governo francês para o chanceler, pelo que aquela tem de lhe ser directamente apresentada. Adenauer lê a proposta e compreende imediatamente que está perante o reconhecimento da Alemanha como um parceiro em pé de igualdade e responde imediatamente ao Governo francês com a sua concordância.

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Declaração Schuman, 9 de Maio de 1950: estão lançadas as bases do que é hoje a UE DR

A divulgação pública do documento será feita à imprensa nesse mesmo dia em Paris, às 6 horas da tarde, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, para onde acorrem mais de 200 jornalistas. Schuman faz a apresentação, no que ficou conhecido como a Declaração Schuman. Grande confusão na audiência sobre o que se estava a passar, ficando muitos jornalistas sem perceber exactamente do que é que se tratava, até que um pergunta:

– Senhor ministro, será que isto é um salto no desconhecido?

Schuman responde que sim, que era exactamente isso e sai a correr para apanhar o comboio para Londres. Só mais tarde se percebeu que nenhum fotógrafo nem nenhuma rádio haviam estado presentes. Pela importância do momento, realizou-se mais tarde uma repetição desta apresentação, desta vez com fotógrafos...

Em Londres, Schuman apresenta o projecto que recebe o apoio de vários ministros ingleses, mas que tem uma reacção adversa da imprensa, com excepção do Economist, que se declara apoiante do projecto. Mas cresce na opinião pública inglesa o receio de que o que está em causa é a perda de soberania do Império. Os Trabalhistas ingleses são contra, aliás como em França os comunistas franceses, ambos com o argumento da perda de soberania. Na Alemanha, os sociais-democratas estão também contra o que dizem ser um projecto de ocupação para os próximos 50 anos. Apenas um social-democrata destoa e saúda o início da união na Europa: Willy Brandt.

Nas semanas seguintes, enquanto decorrem as conversações com os países que deveriam aprovar o Tratado, os ingleses mostram interesse em participar, mas exigem estatuto especial, o que não foi aceite. Monnet dizia sempre que, quando os ingleses percebessem, iriam querer entrar, mas sem condições especiais. O projecto vai seguir o seu caminho com a adesão dos italianos, belgas, holandeses e luxemburgueses. Pelo seu lado, os americanos, que eram a verdadeira autoridade na Alemanha em 1950, depois de desfazerem as dúvidas de que o que estava em causa não era a constituição de um cartel do carvão e do aço, deram todo o seu apoio para que a Alemanha pudesse assinar o Tratado como entidade independente, pela primeira vez desde a Guerra.

Nos finais de Maio de 1950, Adenauer dirá a Monnet: “Senhor Monnet, a realização da proposta francesa é a tarefa mais importante que me espera. Se conseguir levá-la a bom termo, considero que a minha vida valeu a pena.”

A concretização da primeira instituição supranacional europeia será o objecto do próximo capítulo.

Escrito a partir das memórias de Jean Monnet

Próximo artigo desta série: As instituições e os tratados, âncoras do futuro da Europa