Do Montijo a Carnaxide, ou como más decisões ameaçam a natureza e o futuro
Os que cuidam que tudo sabem […] erram mais torpemente; […) presumem que de nada carecem, cegueira em que os mais advertidos tropeçam.
Padre António Vieira (1608-1697)
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Os que cuidam que tudo sabem […] erram mais torpemente; […) presumem que de nada carecem, cegueira em que os mais advertidos tropeçam.
Padre António Vieira (1608-1697)
Tem o poder político, muitas vezes, por hábito, rodear-se não só dos que gostam de bajular, facilitando assim decisões polémicas, mas também dos que são hábeis em desenvolver jogadas e negociatas que põem em causa o bem de um país e o seu futuro. Uma forma perversa de instituir o monólogo, como prática corrente, num absoluto desprezo pelo contraditório.
Foi num clássico do séc. XVII, ostensivamente ostracizado pelos “que tudo sabem”, que encontrei a epígrafe adequada a este texto que pretende sublinhar os poderosos obstáculos e manhosas ciladas que encontram os que se envolvem em causas, sejam elas quais forem, por força do comportamento invariavelmente arrogante do poder político e de acções suas pouco credíveis. Nesse sentido, continuo empenhada em temas, a que já anteriormente me referi, e que exigem que a indignação não se atenue e se exercite a persistência, mesmo que, por vezes, nos pareça ser demasiado tarde. A experiência diz-nos que a luta é desigual, mas sem dúvida também que estimula a vontade e o esforço no desenvolvimento de uma acção, a par de uma vigorosa argumentação, que o lado aparentemente mais forte não poderá ignorar.
1. Aeroporto do Montijo – Conhecemos as anedotas que têm vindo a caracterizar o processo, nomeadamente a dos “pássaros que se adaptarão à nova situação” e temos experiência das desilusões motivadas pelo comportamento daqueles em quem pensávamos poder confiar e que, afinal, traem repetidamente essa confiança. Bem podem clamar de que tudo o que decidem resulta do saber ouvir o Conhecimento e os “Técnicos”, porque o caso do aeroporto do Montijo os desmente flagrantemente. De um lado, Governo e ANA/Vinci em sintonia na assinatura da sua construção, sem um estudo prévio de Impacto Ambiental, e de outro, um sem-número de protestos, a nível nacional e internacional (petição lançada pela Birdlife Holanda com perto de 40 mil assinaturas, evidenciando os “impactos permanentes que sofrerão aves e habitats protegidos no Tejo”, com destaque para o “milherango” cuja rota migratória “é protegida por legislação europeia”).
Inimaginavelmente, no recente dia mundial do Ambiente, que se comemora a 5 de Maio, o Primeiro-Ministro, numa atitude de servilismo, que aliás não lhe é habitual, agradeceu à Vinci nestes termos: “Num momento de grande incerteza, em que a esmagadora maioria dos aviões estão em terra, (...) o compromisso firme da Vinci de avançar com novo aeroporto é um gesto de grande confiança no futuro do país de vencer o vírus e estabilizar e relançar a economia.” Intolerável é ainda pensar que estas afirmações significam que as Câmaras do PCP, que se opunham veementemente à construção do aeroporto no Montijo, justificando as suas razões, na defesa do bem-estar dos munícipes, descobriram agora (compreenda-se, depois de encontros com o Primeiro-Ministro), que aqueles afinal só terão a ganhar com a construção.
Menosprezando a experiência dos efeitos dramáticos da pandemia, que ainda se vive, continua-se a pensar numa Economia não focada nas pessoas, negligencia-se a defesa de recursos naturais e a terra fértil que nos traria alguma segurança alimentar, mantém-se o apoio a um turismo desenfreado, que desgasta e aliena, e António Costa acentua, com a firmeza contagiante da Vinci, que “o futuro vai contar com o novo aeroporto do Montijo.” O trágico desta decisão do poder político, “sustentada em opiniões” em vez de em “argumentos devidamente sustentados com base técnico-económica”, está no facto de lamentavelmente não se querer ouvir o contraditório, não se querer pensar em dúvidas, questões e certezas pertinentemente apresentadas, e, a esse propósito, cito o artigo de Carlos Matias Ramos, antigo presidente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) e ex-bastonário da Ordem dos Engenheiros, no jornal Público (3.12.2019): “A opção Montijo é uma solução sem futuro” porquanto “o aeroporto da Portela, segundo um estudo da Eurocontrol, […] estará completamente saturado em meados da década de 30.”
Será que não é possível ao Governo e à Vinci ouvir e comparar estudos e avaliar diferenças entre as várias propostas (Alcochete, Alverca, Montijo, …), privilegiando também com seriedade, e não em molde de farsa, os seus estudos de impacto ambiental? Será que não é possível uma decisão política bem fundamentada, em cuja argumentação sobressaia, de forma límpida, a opção financeira e tecnicamente mais vantajosa, em nome da defesa autêntica dos interesses dos cidadãos e do futuro do país?
Entretanto, e perante o canto de sereias, focado no “futuro do país”, que não convence nem periga minimamente a vontade dos que conduzem esta causa, oito organizações ambientais, Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), Associação Natureza Portugal/World Wide Fund for Nature (ANP/WWF), A Rocha Portugal, Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), Fundo para a Protecção de Animais Selvagens (FAPAS), Liga para a Protecção da Natureza (LPN), Zero e Almargem) apresentaram uma acção no Tribunal Administrativo de Lisboa, no passado dia 4 de Junho, no intuito de anular a Declaração de Impacto Ambiental que ao responder favoravelmente à construção do aeroporto do Montijo, na base de uma argumentação “pouco credível”, sentenciou, entre outros aspectos, a deterioração progressiva de “uma área natural [Estuário do Tejo] protegida a nível nacional e internacional, pela Rede Natura 2000”. É tempo de não tolerar o intolerável, ou seja, de não aceitar jogadas levianas de diz e desdiz que vilipendiam o estudo e a avaliação das situações, no caso “as áreas protegidas”.
2. Causa idêntica à da não-aceitação do novo aeroporto no Montijo é a que defende a Serra de Carnaxide, atingida pelo olhar guloso de imobiliárias de luxo, com a habitual cumplicidade camarária.
Por cada dia que passa, vai sofrendo a serra a sua destruição, no desmando que representa infelizmente a actuação de muitas Câmaras, incapazes de perspectivar o Homem como parte integrante da Natureza ou de compreender as nefastas consequências ambientais pela destruição de ecossistemas, com o infernal abate de árvores e desnaturalização da terra, como está a acontecer na Serra de Carnaxide. Retomando a mestria de Vieira, ajusto palavras suas, intemporais, à actuação de muitos presidentes de Câmara, a que associo também muitos ministros, sociedades de advogados, empresários, com destaque para o imobiliário, e afins: “Eles são os que com um advérbio podem limitar ou ampliar as fortunas; eles os que com uma cifra podem adiantar direitos e atrasar preferências; eles os que com uma palavra podem dar ou tirar peso à balança da justiça; eles os que com uma cláusula equívoca ou menos clara podem deixar duvidoso, e em questão, o que havia de ser certo e efectivo; eles os que com meter ou não meter um papel podem chegar a introduzir a quem quiserem, e desviar e excluir a quem não quiserem; eles, finalmente, os que dão a última forma às resoluções soberanas de que depende o ser ou não ser de tudo.” (Sermão da Terceira Dominga da Quaresma, Pregado na Capela Real, em Lisboa, 1655).
A Serra de Carnaxide constitui uma zona protegida e classificada de Monumento Nacional porquanto associada ao Aqueduto das Águas Livres. Envolve 3 concelhos (Oeiras, Amadora e Sintra), cada um a trabalhar em prol do betão e a seu bel-prazer, não tendo em conta que as zonas que “lhes pertencem” não estão isoladas da Serra. Elas são a SERRA no seu TODO! Os projectos para devastar e preencher este espaço de reserva natural são inúmeros e nem Planos Directores Municipais ou de Ordenamento do Território ou de Classificação de Reserva Ecológica e Agrícola parecem travar a construção. A empresa imobiliária inglesa, AQUATERRA MASTERPLAN, no seu projecto visa (ainda não será certo) “introduzir uma infra-estrutura de entretenimento, desporto e comércio de qualidade” (concelho de Oeiras); a SKY CITY –JPS GROUP já tem à disposição, tudo “com acabamentos de luxo, 49 moradias isoladas, 66 em banda e 255 apartamentos que contemplam o rio e a serra” (concelho da Amadora); e até o Sport Lisboa e Benfica apresentou o seu projecto, em 2017, a Isaltino Morais, “Cidade Desportiva das Modalidades”, que segundo parece ainda carece de aprovação. Imagens elucidativas do ruído de luxo, em matéria de entretenimento, lazer e residência; imagens das sevícias que o poder político pode cometer, sufocando-nos de betão.
Em suma, “A Serra de Carnaxide está ameaçada por um conjunto de empreendimentos que praticamente destroem o que resta da mata existente, ocupam uma área de máxima infiltração, inviabilizam o corredor verde de Monsanto e ameaçam o Aqueduto das Francesas e o Aqueduto da Serra de Carnaxide.” (GEOTA). Virá a propósito chamar a atenção do leitor não só para a audição na Assembleia da República (Fev. 2017), mas também, e sobretudo, para a petição “Preservar a Serra de Carnaxide” que se encontra no site “Petição Pública” (mais fácil de assinar e mais recente), e igualmente no site Assembleia da República (necessário registo prévio), com o mesmo objectivo: ultrapassar as 4.000 assinaturas.
Convidamo-lo(a) a assinar num dos sites e a promover a sua divulgação.