A solidão de um homem bom
Tudo separa a época em que viveu e agiu Aristides de Sousa Mendes e os dias de hoje. Contrariamente ao regime salazarista, Portugal tem pautado a sua política por valores humanistas que são frequentemente saudados por diversos países europeus. Mas a Europa de hoje já não é a Europa do pós-guerra e infelizmente a memória dos homens é curta…
O Parlamento português acaba de aprovar de forma unânime a trasladação dos restos mortais de Aristides de Sousa Mendes para o Panteão Nacional.
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O Parlamento português acaba de aprovar de forma unânime a trasladação dos restos mortais de Aristides de Sousa Mendes para o Panteão Nacional.
Congratulo-me com esta decisão, em homenagem à memória do homem que teve a coragem de seguir a sua consciência, da mesma forma que me congratulo com o facto de o recém-criado Grupo de Trabalho Ministerial para a Memória do Holocausto estar a promover um programa comemorativo sobre Aristides de Sousa Mendes quando perfazem 80 anos da sua acção de salvamento de milhares de pessoas perseguidas pelo nazismo.
Será certamente uma boa oportunidade para reflectir sobre as razões da duríssima punição que sofreu e da forma dolorosa e profundamente injusta do final da sua vida. Os últimos catorze anos da vida de Aristides de Sousa Mendes até à sua morte em 1954 são uma verdadeira descida ao inferno. A 4 de Julho de 1940, Salazar ordenou a instauração de um processo disciplinar contra Aristides de Sousa Mendes. Julgado em processo administrativo, sem hipótese de recurso, foi banido do serviço público. Mas nunca desistiu de lutar: recursos legais, pedidos de clemência, audiências, cartas e contactos pessoais com diplomatas e embaixadas, tudo tentou, mas sempre em vão. A sua saúde debilita-se, a família desfaz-se com a morte da mulher e a dispersão dos filhos pelo mundo.
Desobedecendo a Salazar, Aristides de Sousa Mendes entra em ruptura com tudo aquilo que tinha sido o seu universo: católico, conservador e fiel servidor do Estado, ele não hesitou em salvar pessoas de religião e ideologias diferentes, contrariando as ordens do regime que serviu ao longo de toda a sua vida. É, pois, um homem em ruptura que chega a Portugal em Julho de 1940. Não encaixa nos parâmetros tradicionais. É por isso que ao longo do combate pela sua reabilitação, Sousa Mendes é um homem só: não tem obviamente a solidariedade do seu campo tradicional, incluindo da Igreja, e não sendo um opositor salazarista também não tem a solidariedade da esquerda, nem do movimento antifascista; quer num campo, quer noutro, nenhuma voz se levanta para o defender. É assim um homem só, como o são todos os grandes homens. Apanhado no turbilhão da História, Aristides de Sousa Mendes mostrou que, para além da disciplina, existe em cada ser humano algo por vezes muito incómodo – a consciência. E quando uma e outra entram em contradição, cada um de nós tem liberdade de escolha.
Na verdade, sim, houve uma voz, uma pequena voz. E essa voz foi da Comunidade Israelita de Lisboa. Quem o diz é John Paul Abranches, hoje já falecido, filho de Aristides de Sousa Mendes, que com ele partilhou e presenciou não apenas a decisão do pai de dar os vistos, mas também todas as consequências que se lhe seguiram. Numa carta datada de 13 de Setembro de 1989 dirigida a Yvette Davidoff, ela própria refugiada e que trabalhou na Comunidade até ao final da sua vida, escreve John Paul Abranches: “(...) Gostava de lhe tornar a dizer que a assistência prestada por si e pelo Comité Judaico em Lisboa, aos meus pais e a outros membros da nossa família foi muito apreciada. As nossas circunstâncias eram muito difíceis, e a Comunidade Judaica Portuguesa foi a única que se preocupou. Obrigado pela vossa ajuda constante ao longo desses anos difíceis. Se alguma vez alguém ousar dizer ‘Por que razão os judeus não ajudaram?’, por favor, não hesite em deixá-los ler estas minhas palavras (...).”
Refiro este testemunho, não por considerar que a ajuda da Comunidade Judaica na época tenha tido um peso decisivo para minorar o sofrimento de Aristides de Sousa Mendes, mas ao contrário para realçar a solidão da solidariedade que o rodeou.
Ao fazermos o balanço da atitude de Portugal e, nomeadamente, de Salazar e do Ministério dos Negócios Estrangeiros relativamente ao salvamento de judeus durante a 2.ª Grande Guerra, a tentação mais fácil é arrumar a questão concluindo simplesmente que Portugal não fez tudo o que estava ao seu alcance nesse sentido. É um facto. Até ao fim, a sua política pautou-se por três elementos centrais: um legalismo rigorista no reconhecimento da nacionalidade portuguesa a quem tinha sido outorgada ou de quem dela descendia; inflexibilidade quanto ao carácter transitório do acolhimento de refugiados, que se reflectiu na precariedade da sua situação em Portugal; e um manobrismo equilibrista entre a Alemanha e os Aliados, com o objectivo de assegurar a sobrevivência do regime, e a sua própria, no pós-guerra.
No entanto, relativamente à questão do salvamento dos civis judeus e não judeus, Portugal não sai pior no retrato do que os outros países neutros ou até, do que os próprios Aliados. Nos EUA entraram apenas 21 mil judeus durante a guerra. Em Portugal, embora em trânsito, acabaram por entrar mais. E exceptuando a Dinamarca, que defendeu e salvou efectiva e colectivamente a sua comunidade judaica, só já no final, quando o mal estava praticamente consumado e a derrota da Alemanha era irreversível, é que os países neutros e os Aliados tomaram algumas iniciativas no que diz respeito ao salvamento de civis. Salazar não é uma excepção nas considerações de realpolitik que nortearam na época a política da grande maioria dos governos.
Na realidade, nem a Europa nem os EUA se preocuparam demasiado com a sorte dos judeus europeus. E a verdade é que a sua “despreocupação” contribuiu significativamente para o desaparecimento do judaísmo europeu. Fazem falta? Não me compete a mim dizê-lo, mas sim, fazem falta. Fazem falta na Europa, fazem falta em Portugal. E fazem falta não porque sejam melhores, mas porque tiveram parte activa na construção europeia, porque eram profundamente europeus. É por isso que no momento actual tenho dificuldade em entender o “pânico” gerado a propósito dos até agora 16.750 processos aprovados de naturalização de antigos sefarditas, nos cinco anos que medeiam entre a entrada em vigor da Lei de 2015 e 2020. Como não entendo a argumentação que tenho ouvido de que esses pouco mais de 3000 por ano incomodem tanto a União Europeia ou os Estados Unidos, ao ponto de manifestarem a sua preocupação pelas eventuais regalias que o passaporte europeu confere a essas pessoas. E não entendo, porque o número de nacionalidades reconhecidas por países como a Alemanha, Roménia ou a Polónia é muitíssimo maior e não consta que tenha levantado protestos da UE e dos EUA. E, finalmente, também não entendo qual a legitimidade da Comissão Europeia para sequer opinar sobre o assunto.
Tudo separa a época em que viveu e agiu Aristides de Sousa Mendes e os dias de hoje. Contrariamente ao regime salazarista, Portugal tem pautado a sua política por valores humanistas que são frequentemente saudados por diversos países europeus. Mas a Europa de hoje já não é a Europa do pós-guerra e infelizmente a memória dos homens é curta…