Marvila: vazios urbanos, cheios de passado, presente e futuro

Os vazios urbanos de Marvila têm vindo a despertar grande interesse junto de entidades públicas e privadas. No âmbito do projeto Rock, estivemos nos últimos três anos, com a população local, a investigar sobre a regeneração de uma parte deste território. Próximos do fim do projeto, resta responder a uma questão: porquê e como regenerar os vazios urbanos?

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Nuno Ferreira Santos

Todas as manhãs, o senhor Ernesto sai de casa e cuida da sua horta. Como no caso de outros moradores de Marvila, freguesia lisboeta entre o centro histórico e o Parque das Nações, a horta do senhor Ernesto é apenas uma das suas ocupações, mas tem um significado profundo de ligação à terra. Esta e outras hortas foram criadas nos descampados existentes no contexto de antigas vilas, pátios abandonados e terrenos expectantes desta freguesia. 

A regeneração destes vazios urbanos — expressão que se usa para designar os espaços vazios na cidade, tais como os descampados — tem vindo a marcar o debate público sobre as transformações em Lisboa. Mesmo assim, há vazios que, à espera de ações de desenvolvimento que ponham as necessidades dos moradores em matéria de comércio local, transporte público e serviços de proximidade no topo das prioridades, foram sendo ocupados e reinventados de outra forma.

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Hortas urbanas na freguesia de Marvila (foto: ) Equipa ICS projeto ROCK/Vítor Barros

O que chamamos “vazios urbanos” poderá, portanto, estar longe de representar um verdadeiro vazio. Estes espaços estão em muitos casos carregados de atividades, mas também significados, esperanças, visões e, por vezes, receios do que estará por vir. É com esta ressalva que nós, membros da equipa de investigação do projeto “Rock – Regeneração e Otimização do Património Cultural em Cidades Criativas e do Conhecimento”, financiado por fundos comunitários, nos propomos a refletir sobre o conceito de vazio urbano em Marvila e os desafios que este coloca tanto às populações locais como ao poder autárquico. 

As paisagens de Marvila

A horta do senhor Ernesto foi criada ao pé da Biblioteca Municipal de Marvila, a mais recente de Lisboa, construída na casa de uma antiga quinta. Caminhando a partir desta biblioteca e atravessando as duas linhas de comboio que dividem o território, chegamos ao Poço do Bispo, na zona baixa de Marvila. Pelo caminho passamos por zonas em contraste profundo com a vida apressada da capital. A montante das linhas de comboio, a flora espontânea encontra um novo habitat, em diálogo, a céu aberto, com antigos conventos e quintas em ruínas. Já na zona ribeirinha deparamo-nos, pelo contrário, com uma dinâmica incessante de reconversão de antigas fábricas e armazéns em novos espaços de comércio e trabalho. 

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Antiga fábrica Abel Pereira da Fonseca no Poço do Bispo, na zona ribeirinha da freguesia de Marvila Equipa ICS projeto ROCK/Vítor Barros

Tendo em conta a sua localização privilegiada na cidade e a vista sobre o rio Tejo, esta zona ribeirinha está a ser alvo de grandes transformações, passando a ser um pólo de atração de investimento público e privado, direcionado para a reabilitação do edificado e a regeneração da malha urbana. De facto, as transformações em curso neste território são muitas, desde a expansão de infraestruturas públicas à construção de nova habitação. E é entre as muitas iniciativas que se instalam, entre passado, presente e futuro, que surgem novos desafios. À diferença do que se passa acima das linhas de comboio, o investimento imobiliário e a construção de condomínios de luxo junto ao rio têm vindo a determinar uma transformação profunda e fenómenos de gentrificação que refletem, em boa medida, o que aconteceu em quase toda a cidade até à disrupção da pandemia da covid-19, que poderá ter posto em causa (e em pausa) alguns aspetos deste processo.

O que é um vazio urbano?

Iniciámos há três anos a nossa investigação/ação em torno da Biblioteca de Marvila. A nossa agenda foi pensada em conjunto com uma parceria internacional de entidades públicas e privadas, incluindo universidades e autarquias. O nosso trabalho foi o de acompanhar e investigar novas formas de regeneração urbana e valorização do património cultural, através do envolvimento ativo das populações locais. Foi através deste trabalho que nos apercebemos que entender a regeneração urbana significa, antes de mais, pensar o vazio urbano, termo que se tornou cada vez mais central no debate público atual.

Aproximámo-nos de uma ideia de vazio urbano como algo que apela ao imaginário coletivo e que é intrinsecamente ambivalente, pois fomenta uma ideia de degradação física e abandono, e ao mesmo tempo de potencial, oportunidade e, em certa medida, liberdade de ação. Esta ideia surge-nos, por exemplo, no famoso ensaio do arquiteto espanhol Sóla-Morales, que, em 1995, definiu o vazio como “terreno vago”: um espaço abandonado, porém promissor, repleto de possibilidades e expectativas. Antes dele, o urbanista norte-americano Kevin Lynch, no seu último livro, Wasting Away, concluído e publicado postumamente por um de seus alunos em 1990, ofereceu uma análise eficaz sobre o papel vital dos espaços vazios e abandonados de uma cidade.

“Um lugar feio, poluído, mas tolerante [...] esses remanescentes urbanos também são lugares mais livres, onde se é temporariamente aliviado das pressões de status, poder, propósito explícito e controlo rígido.”

Como entender os vazios urbanos de Marvila?

A reflexão à volta do conceito de vazio urbano torna-se pertinente para enquadrar as transformações em curso na freguesia de Marvila. Por um lado, vários agentes públicos e privados veem neste território espaços amplos e degradados que representam oportunidades para a regeneração, assim como de investimento e negócio. Por outro lado, estes espaços foram-se tornando parte integrante da vida diária da população local, construindo à sua volta um imaginário feito de expectativas e respostas às suas necessidades.

Como nos explicou o senhor Ernesto, Marvila mostra como os vazios urbanos não existem apenas em zonas sem habitantes. Os vazios, como os descampados, passaram a fazer parte da vida diária dos moradores, que, em alguns casos, foram ocupando os terrenos com práticas de agricultura e horticultura. Existe um descampado entre o apeadeiro de Marvila e as habitações adjacentes à biblioteca que é um exemplo perfeito do que entendemos por vazio urbano. Trata-se de um terreno urbanizável onde, nos últimos anos, vários agentes têm vindo a pronunciar-se.

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Descampados entre a Biblioteca e o apeadeiro de Marvila Equipa ICS projeto ROCK/Francesca Berardi

Por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa (CML), a implementação do Programa de Renda Acessível definiu neste, e outros terrenos contíguos, a construção de nova habitação à semelhança do que foi proposto em outros bairros da cidade. Já a equipa da CML envolvida no projeto Rock propôs neste mesmo espaço a instalação temporária de um jardim (comestível) para todos — projeto em função do qual foram organizadas sessões de auscultação com os moradores.

Também na população local este descampado despertou interesse. No ano passado, um grupo de moradores decidiu organizar uma consulta no bairro sobre a criação de um espaço verde que respondesse, com a inclusão de ciclovias, à escassez de espaços públicos equipados na área e às necessidades de convívio e vida comunitária, iniciativa esta que mobilizou o apoio da Junta de Freguesia de Marvila e da CML.

“Estou completamente convencido de que isto vai correr muito bem”, disse o senhor Ernesto pouco depois ter sido declarado o período de confinamento em Portugal. Ele vê o projeto do espaço verde como uma grande melhoria para o seu bairro e a prova do poder dos moradores e das associações que os ajudaram. 

Para além dos descampados

Um vazio urbano não é necessariamente apenas um terreno expectante ou um descampado. Há espaços fechados ou inutilizados que também se enquadram nesta nossa reflexão.

Numa reunião pública descentralizada da CML que decorreu na Biblioteca de Marvila em fevereiro 2020, surgiu no debate a intenção de destinar algumas lojas municipais vazias desta zona para iniciativas de caráter cultural. Esta proposta integra-se na estratégia municipal de criação de um pólo cultural em torno da biblioteca, a qual se tornou, desde a sua instalação, muito mais do que um mero espaço de consulta e leitura. A biblioteca funciona também como um centro de partilha para a comunidade e ligação com o resto da cidade, tornando-se um espaço representativo do bairro. A ocupação das lojas deverá, então, dar seguimento a um historial de atividades culturais que têm sido promovidas nos últimos anos, através de iniciativas como Os Dias de Marvila, cuja programação cultural e artística visa animar este território e abrir as suas portas a novos visitantes durante duas semanas; e os Bibliogamers, em que jovens e menos jovens são convidados a familiarizar-se com a linguagem dos videojogos.

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Biblioteca Municipal de Marvila Equipa ICS projeto ROCK/Vítor Barros

Contudo, alguns moradores não veem com muito agrado esta proposta. Entre eles, a senhora Cristina considera que estas iniciativas “de nada servem”, se as necessidades primárias continuam sem resposta. A escassez de serviços de proximidade, tais como mercearias e centros de saúde, tem vindo a representar uma falta incontornável, em particular para a população mais envelhecida, o que tem gerado um sentimento de isolamento relativamente ao resto da cidade. Estes problemas têm-se acentuado nos últimos meses, quando, devido às restrições impostas em resultado da pandemia da covid-19, a população local passou a estar limitada nas deslocações. Nesta parte de Marvila, as restrições terão tido um impacto ainda mais severo, agravando as desigualdades já existentes. A necessidade de investimento público para a regeneração deste território tornou-se, assim, ainda mais evidente.

Mas, como já ouvimos dizer em reuniões do grupo comunitário desta zona, “nós não comemos cultura”. O desagrado não é, portanto, uma aversão às iniciativas culturais em si, mas antes um desejo de dar prioridade a outras necessidades, há muito tempo reclamadas pelos moradores.

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“Loja Com Vida”, projeto pop-up desenvolvido pela associação Rés-do-Chão através de financiamento do projeto ROCK Equipa ICS projeto ROCK/Vítor Barros

No verão de 2019, cientes de que o debate em torno dos vazios urbanos necessita de um maior grau de análise, decidimos efetuar um inquérito à população residente no território abrangido pelo projeto Rock. O inquérito recolheu cerca de 400 respostas por parte dos moradores, constando de múltiplos tópicos, entre os quais a perceção dos vazios urbanos na zona. Em resposta a este tópico, concluímos que existe uma tendência generalizada para associar o conceito de vazio urbano a três tipos de espaços: os descampados, as ruínas de antigas fábricas e indústrias e as lojas desocupadas. A grande maioria da população entrevistada desconhece, porém, qualquer entidade que esteja empenhada na reconversão destes espaços e, dos poucos que têm conhecimento de iniciativas ou obras em curso, quase metade identifica o poder autárquico como o ator principal do qual se esperam respostas. A carência de comércio local é, aliás, uma das faltas mais gritantes apontada pelos moradores inquiridos. 

Pensar o vazio urbano antes de intervir

O que resulta da nossa reflexão é que o vazio urbano nunca existe por si só. Ele é, primeiramente, um produto do imaginário coletivo, que acaba por afetar a forma como entendemos o uso e reuso destes espaços. O vazio, como qualquer conceito, orienta práticas diárias e, em alguns casos, decisões políticas. Qualquer tipo de intervenção, pública ou privada, para a regeneração deste território atuará segundo uma visão de vazio que levanta outras questões, por vezes mais profundas e abrangentes, vivenciadas no dia a dia pelas populações que lá habitam.

Tendo em conta estas tensões, o vazio não pode ser meramente entendido como uma ausência à espera de (re)ocupação. Esta visão unidimensional não é apenas arriscada, por fazer tábua rasa do passado e dos usos presentes, por vezes informais, destes espaços. É também uma visão simplificada das possibilidades futuras, passando ao lado das inúmeras funções que a cidade exerce e pode exercer para os seus moradores (e visitantes), e vice-versa.

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Frente ribeirinha de Marvila Nuno Ferreira Santos

Admitimos que a ambivalência do conceito de vazio urbano torna difícil, senão impossível, encontrar uma definição única e consensual. Contudo, consideramos necessário continuar a procura de entendimentos comuns sobre a cidade e as formas como ela se faz e desfaz pelas pessoas. Este debate não é útil apenas para nós investigadores, mas também para decisores políticos e populações locais, ainda mais nestes tempos turbulentos em que somos todos chamados a repensar a cidade e as suas funções.

Durante o estado de emergência proclamado devido à pandemia, muitos de nós passaram várias semanas confinados aos nossos bairros de residência. Assim, estas questões tornaram-se ainda mais pertinentes. Enquanto várias iniciativas foram implementadas para prestar assistência às populações mais vulneráveis também em Marvila, há problemas que continuam por resolver, como o acesso a espaços verdes e públicos equipados, e mais comércio de proximidade. Uma reflexão aprofundada sobre os vazios urbanos apresenta, portanto, a oportunidade para repensar o futuro do bairro na sua própria integração e na sua ligação à malha urbana da cidade.

Porém, como afirma a senhora Cristina, esta reflexão não pode abranger apenas os vazios tangíveis, como os descampados ou as lojas. Devemos preocupar-nos também com o vazio de laços comunitários e circulação de informação que acabam por limitar a tomada de consciência sobre estes problemas. Contudo, continua, não há que perder a confiança num futuro melhor para Marvila. “Eu tenho esperança que melhores dias virão, desistir é morrer.”

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Representação do bairro desenhada pela associação Rés-do-Chão com a população local Equipa ICS projeto ROCK/Vítor Barros

Roberto Falanga, sociólogo, ICS-UL; Jessica Verheij, geógrafa, ICS-UL; Francesca Berardi, jornalista, ICS-UL


Agradecemos o financiamento do projeto Rock (H2020 Grant Agreement: 730280) e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BPD/109406/2015)


Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico