Contra todos os iconoclasmas
A violência contra as obras de arte é sempre um acto fascista, sejam quais forem as razões invocadas ou as bandeiras que se desfraldem para o levar à prática.
A vandalização de estátuas ou outras obras de arte pública alegadamente ligadas a manifestações de apoio ao esclavagismo, ao colonialismo, ao suprematismo branco e a outras formas de ignominiosa opressão, tanto na Virgínia como em Antuérpia, em Hamilton, em Lisboa, e em outras cidades do mundo, na sequência dos justos protestos contra o bárbaro assassinato do afro-americano George Floyd em Minnesota, veio pôr a nu uma velha questão com que a humanidade se confronta desde que existem registos históricos: a vandalização de monumentos que em algum momento passaram a ser vistos como símbolos nefastos por parte de determinadas dinâmicas políticas, sociais, religiosas, ou de defesa de um gosto preestabelecido.
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A vandalização de estátuas ou outras obras de arte pública alegadamente ligadas a manifestações de apoio ao esclavagismo, ao colonialismo, ao suprematismo branco e a outras formas de ignominiosa opressão, tanto na Virgínia como em Antuérpia, em Hamilton, em Lisboa, e em outras cidades do mundo, na sequência dos justos protestos contra o bárbaro assassinato do afro-americano George Floyd em Minnesota, veio pôr a nu uma velha questão com que a humanidade se confronta desde que existem registos históricos: a vandalização de monumentos que em algum momento passaram a ser vistos como símbolos nefastos por parte de determinadas dinâmicas políticas, sociais, religiosas, ou de defesa de um gosto preestabelecido.
O tema é antigo e sempre perigosamente recorrente, mostrando à sociedade quão acéfalo é o pendor dos homens para a violência gratuita e quão frágeis para lhe resistir são as obras de arte e os monumentos da História – sempre, nesse contexto, as primeiras vítimas a tombar. O recente livro de Éric Vuillard A Guerra dos Pobres, centrado nas revoltas camponesas na Alemanha no tempo da Reforma protestante, e na sua subsequente e violentíssima repressão, mostra bem como o ódio contra tudo o que possa ser considerado diferente alimenta as ondas de iconoclasma. Em nome da fé, em nome de Deus, em nome dos poderes instituídos, em nome de direitos ditos inalienáveis, mataram-se povos inteiros e destruíram-se patrimónios civilizacionais inestimáveis. Foi assim, mas parece que esquecemos.
A História da Arte, a museologia e as Ciências do Património têm justamente contribuído para fortalecer essa consciência de pertença. Recorro às sábias palavras do discurso de José Tolentino de Mendonça no Dia de Camões e das Comunidades e cujo sentido é mais ou menos este: a raiz da civilização é a comunidade, e o seu fermento é a cultura partilhada. Como diz o poeta, “é na comunidade que a nossa história começa, quando do eu fomos capazes de passar ao nós e de dar a este uma determinada configuração histórica, espiritual e ética”. Com máximo propósito, estas palavras ganham sentido face aos actos de violência contra obras de arte – os monumentos públicos, as estátuas e os memoriais – que, nos últimos dias, se têm multiplicado em várias cidades do nosso planeta, e também em Portugal, na onda dos sentidos protestos contra a repressão xenófoba nos EUA.
Ora o repúdio mais que legítimo por tais actos, bem como por outras ignomínias que se praticam contra a raça, a classe social, a religião, a língua ou a cultura daqueles que são vistos como “os outros”, destruindo os seus símbolos de identidade cultural e patrimonial, não pode em nenhuma circunstância justificar respostas onde também o recurso à iconoclastia faz parte da agenda de protesto. Quando as coisas assim se confundem, que capital de esperança sobra para a grande massa de mulheres e homens conscientes e consequentes, que vêem no farol da Cultura o seu campo de afirmação identitária? O iconoclasma é sempre um acto inadmissível, e não se resume naturalmente aos atentados do Daesh, ou dos talibans, contra museus, monumentos e demais patrimónios da humanidade, pois se alarga às atrocidades dos senhores do mundo nas guerras de cobiça contra populações inteiras para pilhagem e controle dos seus recursos.
Tal como essas acções à margem dos mais elementares princípios éticos, também a violência contra as obras de arte é sempre um acto fascista, sejam quais forem as razões invocadas ou as bandeiras que se desfraldem para o levar à prática. Chamar às obras de arte “degeneradas” (como fazia Goebbels na tristemente célebre exposição de Munique em 1937) ou “contaminadas” (como a historiografia de arte do Estado Novo chamava às artes miscigenadas no contexto da colonização e do império) foi sempre, como se recorda, linguagem dos totalitarismos e justificação para todos os actos suprematistas contra a afirmação cultural “subdesenvolvida”.
Ora tal argumentação anti-patrimonial e cunho suprematista não poderá em nenhuma circunstância, por acrescidas razões, ser tomada como arma dos que justamente se revoltam em nome de princípios de igualitarismo e justiça social... Como historiador de arte que sou, admito que se retirem obras de arte, por razões estéticas ou simbólicas (e quantas o não foram ao longo da História!), resguardadas em museus ou deslocalizadas da sua função gratulatória primeva, mas nunca posso tolerar que essas mesmas peças e monumentos se brutalizem, ou destruam! Na triste saga a que assistimos por causa da vandalização da estátua do Padre António Vieira, no Largo da Misericórdia, não existe fronteira que branqueie radicalismos, consoante a tonalidade ideológica, sabendo-se que, à espreita, temos os extremistas de direita, sempre ávidos de usar – pelas piores razões – situações como estas em seu proveito...
Pergunto: não aprendemos nós todos com a História? Parece que não sabemos, mas devíamos saber, que todas as obras de arte (independentemente da sua maior ou menor qualidade estética) são sempre trans-contextuais e, mais!, estão isentas de culpa pelos desmandos da cegueira humana. Vamos retirar de exposição pública no Metropolitan Museum de Nova Iorque o excepcional retrato do Cardeal Fernando Niño de Guevara, pintado por El Greco (c. 1600), porque o retratado é uma figura infame, responsável por inúmeras fogueiras inquisitoriais, coisa que aliás o próprio pintor bem sabia, deixando na tela a impressão da sua antipatia pelo modelo? Ora as obras de arte não se confundem nem esgotam nos temas que representam! Elas são permanentemente trans-contemporâneas e assim desfilam diante dos nossos olhares como um permanente e renovado desafio à percepção, à sensibilidade, à inteligência e aos novos saberes.
No excelente discurso que proferiu na cerimónia do Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades, Tolentino de Mendonça lembrou uma parábola que atribuiu à antropóloga e activista social Margaret Mead (1901-1978) para nos confrontar com os males maiores do nosso tempo: a cobiça e o egoísmo, parceiros da incultura e, como tal, antíteses da fraternidade. A parábola, creio, diz-nos diz tudo aquilo que o conceito de Comunidade encerra: “Um estudante teria perguntado a Margaret Mead qual seria para ela o primeiro sinal de civilização. E a expectativa geral é que nomeasse, por exemplo, os primeiríssimos instrumentos de caça, as pedras de amolar ou os ancestrais recipientes de barro. Mas a antropóloga surpreendeu a todos, identificando como primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido documenta a emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua segurança, até que recuperasse. A raiz da civilização é, por isso, a comunidade. É na comunidade que a nossa história começa.”
As obras de arte – todas elas – contribuem para esta configuração histórica, cultural, espiritual e ética do mundo. Não só o mundo em que foram produzidas e vivenciadas, mas também os mundos que se seguiram, e o mundo actual, em que essas mesmas obras continuam a ser vistas, quanto mais não seja como testemunho vivo de uma História comum. Sim, as obras de arte, porque social e ideologicamente comprometidas, dão sempre testemunho e suscitam debate, seja no espaço público, no museu, no edifício religioso ou civil onde se exponham aos olhares de ontem, de hoje e de amanhã. É uma experiência dialogal de afectos, capaz de subverter o silêncio terrível que habita o coração dos homens e de impactar o imperioso abraço solidário por que todos ansiamos. Neste diálogo estético e afectivo não pode haver lugar para a vandalização e a destruição.