Obrigada pela medalha, Sr. Presidente! Agora vamos ao que interessa
Agradecemos, Sr. Presidente, mas o que faremos com as medalhas? Amanhã, quando for trabalhar e não puder fazer pelos meus utentes o melhor que sei, por não existir ecografia no meu hospital, ou por o sistema informático estar em baixo e ter de os fazer voltar noutro dia, o que farei? Exibo-lhes orgulhosamente a medalha?
O Presidente da República homenageou os profissionais de saúde no seu discurso do 10 de Junho. Considerou-os “heróis”. Vai entregar-lhes medalhas. Agradecemos muito, Sr. Presidente!
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O Presidente da República homenageou os profissionais de saúde no seu discurso do 10 de Junho. Considerou-os “heróis”. Vai entregar-lhes medalhas. Agradecemos muito, Sr. Presidente!
Agradecemos, mas não somos heróis nem heroínas. Somos trabalhadores e trabalhadoras. Médicos e médicas, sim, nunca nos esquecemos disso. Como poderíamos esquecer, se é (também) connosco que contam para ajudar os portugueses a fazer face a uma epidemia mortífera e debilitante? Como poderíamos esquecer, se desde o primeiro instante nos apresentámos na linha da frente, mesmo cerrando os dentes com medo, por nós e pelos nossos? Como poderíamos esquecer, se ainda hoje, volvidos três meses, continuamos a abdicar de estar com familiares e amigos, porque sabemos que representamos um risco para eles?
Agradecemos, Sr. Presidente, mas o que faremos com as medalhas? Amanhã, quando for trabalhar e não puder fazer pelos meus utentes o melhor que sei, por não existir ecografia no meu hospital, ou por o sistema informático estar em baixo e ter de os fazer voltar noutro dia, o que farei? Exibo-lhes orgulhosamente a medalha?
E quando fizermos as já habituais mais de 700 horas extraordinárias por ano? E quando trabalharmos noites, fins-de-semana e feriados, privando-nos do necessário descanso e do tempo de lazer em família? E quando, exaustos depois de 12 ou 24 horas de trabalho (às vezes mais), percebemos que afinal perdemos quase 20% de poder de compra na última década? E quando, após várias horas sem poder comer nem beber, retirarmos finalmente os equipamentos de proteção individual (EPI) e contemplarmos as marcas da máscara que já fazem parte do nosso rosto?
E quando os colegas precários, que não tiveram vaga para qualquer especialidade, somando-se aos milhares de falsos recibos verdes do país, ficarem infetados com covid e não tiverem direito a qualquer apoio na doença?
Nessas alturas, sentir-nos-emos recompensados pelas medalhas?
E agora pedem-nos que retomemos a atividade não-covid. Com certeza, é o que nós queremos também e é o que os utentes precisam. Mas como, se já estamos sobrecarregados com horas extra? Como, se nos pedem que continuemos na linha da frente do combate à covid? Como, se se multiplicam contactos não agendados dos utentes via telefone e e-mail, encavalitados nas nossas habituais consultas?
O Serviço Nacional de Saúde tem sido sucessivamente maltratado nas últimas décadas. Pouco a pouco, tem-lhe sido retirada capacidade e tem-se cortado investimento, que é canalizado para privados em exames, consultas e cirurgias que o SNS já não consegue fazer. Apesar dos reforços no orçamento da Saúde pomposamente anunciados pelo Governo, as transferências do Orçamento do Estado para o SNS têm ficado cronicamente aquém da despesa – entre 2014 e 2019, as transferências do OE para o SNS somaram 50.819 milhões de euros e a despesa do SNS foi de 57.598 milhões, portanto registou-se um saldo negativo de 6779 milhões. Mesmo com o reforço de 504 milhões anunciado neste orçamento suplementar, estima-se que o saldo em 2020 fique negativo em 305 milhões de euros (tendo em conta a despesa estimada no OE2020, que sabemos que a pandemia com certeza fará subir). Reforço esse onde não há lugar para contratar médicos.
Esta é a doença crónica do SNS, que se agudiza nos momentos de exigência acrescida, como esta pandemia, fazendo-o claudicar. É nestas alturas que são postas a nu as graves insuficiências do SNS, para as quais temos vindo a alertar há tanto tempo. Mas, até agora, ninguém nos tem ouvido.
O SNS não colapsou com a pandemia porque parou tudo o resto e ficou sobretudo dedicado à covid-19. Mas ficaram doenças por diagnosticar, cirurgias por fazer, consultas por agendar. E só daqui a algum tempo ficaremos a saber as consequências de tudo isto para a saúde dos portugueses.
Apesar das péssimas condições de trabalho, que a pandemia só veio agravar, os médicos, e todos os profissionais de saúde, excederam-se e asseguraram a resposta. Aguentam o barco do SNS há décadas, mesmo assistindo ao progressivo encerramento de camas e de serviços, à redução de equipas, ao aumento do número de horas extraordinárias baratas e à fuga de colegas à procura de melhores condições. A falta de recursos humanos é o principal calcanhar de Aquiles do SNS e é o fator que mais compromete a necessária simultaneidade da resposta à pandemia e do retomar da atividade regular. Profissionais precisam-se, e com urgência. Muitos dos que saíram para o setor privado ou para a emigração gostariam de regressar ao SNS. Mas não voltarão se lhes forem oferecidas as atuais condições.
Um SNS de qualidade não se constrói com medalhas. É necessário reabilitar a carreira médica e torná-la atrativa, de forma a voltar a fixar profissionais, bem como estabelecer remunerações dignas. A atividade em atraso não pode ser recuperada agendando consultas à mesma hora ou com cinco ou dez minutos de intervalo, sobretudo numa altura em que cada procedimento demora mais tempo devido aos cuidados a ter com higienização e troca de EPIs devido ao SARS-CoV-2. E é mais do que altura de reconhecer que as profissões na área da saúde têm um risco e penosidade acrescidos, ao estarem sempre na linha da frente do combate a todas as doenças e eventuais pandemias. Foi assim na gripe A, no ébola e em tantos outros momentos de exigência em que nunca nos furtámos a enfrentar o risco.
Melhorar as condições dos profissionais de saúde não é despesismo nem privilégio. É investir num SNS que esteja presente para todos, com ou sem medalhas.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico