Memória, justiça e nacionalidade
Aceitando-se a ideia de manter inalterado o regime atual de naturalização de descendentes de sefarditas até final de 2021, temos uma janela de tempo para procurar soluções que salvaguardem um património que tanto tem valorizado Portugal e de que nos devemos orgulhar sem hesitações.
Nas últimas semanas tem decorrido um debate alargado em torno das disposições da Lei da Nacionalidade que permitem, desde 2013, a naturalização de descendentes de judeus sefarditas. Nesta matéria, não importa apenas convocar a memória do final do século XV e dos séculos de Inquisição e violência que se lhe seguiram e que tornam justa e necessária esta reparação, sendo também essencial ter presente a evolução recente da legislação da nacionalidade em Portugal, pautada por abertura e alargamento de direitos nos últimos anos. Partindo destes dois eixos estruturantes, é possível enquadrar solidamente a identificação de eventuais problemas em torno da aplicação da lei e aferir da necessidade de correções ou afinamentos.
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Nas últimas semanas tem decorrido um debate alargado em torno das disposições da Lei da Nacionalidade que permitem, desde 2013, a naturalização de descendentes de judeus sefarditas. Nesta matéria, não importa apenas convocar a memória do final do século XV e dos séculos de Inquisição e violência que se lhe seguiram e que tornam justa e necessária esta reparação, sendo também essencial ter presente a evolução recente da legislação da nacionalidade em Portugal, pautada por abertura e alargamento de direitos nos últimos anos. Partindo destes dois eixos estruturantes, é possível enquadrar solidamente a identificação de eventuais problemas em torno da aplicação da lei e aferir da necessidade de correções ou afinamentos.
Tendo neste quadro procurado explicar o conteúdo da proposta de alteração apresentada pelo PS, fui por isso associado à sua autoria ou aos termos em que se propunha a sua revisão. Reconhecendo que quem defende a alteração suscita de boa fé questões jurídicas pertinentes sobre possíveis consequências da lei em vigor, tenho procurado, no espaço plural de debate no seio do PS, contribuir para que eventuais problemas pontuais não conduzam à solução drástica de eliminação ou revisão de uma norma aprovada por unanimidade em 2013, fazendo recuar o princípio de reparação que entendo dever continuar plenamente consagrado na lei.
Sou um dos subscritores do projeto de lei do PS que em 2013 introduziu esta possibilidade na lei e, mais recentemente, redigi e fui o primeiro subscritor da resolução que instituiu o dia 31 de Março como Dia da Memória das Vítimas da Inquisição. Refiro-o, na medida em que esse texto veio realçar precisamente a naturalização de descendentes de judeus sefarditas como um dos vários momentos em que a memória foi valorizada com ações concretas, e em que o Estado Português se vinculou na lei a corrigir centenas de anos de perseguição e discriminação.
Não me parece, pois, que exista rigorosamente nada de estruturalmente errado ou qualquer problema que decorra diretamente da norma que admite a naturalização de descendentes de judeus sefarditas, antes pelo contrário. Por um lado, porque a tradição mais recente da nossa Lei da Nacionalidade tem sido a de ajudar a construir e revelar um País de braços cada vez mais abertos a quem junto de nós pretende construir a sua vida e contribuir para a comunidade nacional, bem como para aqueles que, por inúmeras vias, descendem de Portugueses ou que foram privados (ou os seus antepassados) dessa ligação. Não só tem sido essa a evolução da Lei da Nacionalidade, como o PS tem sido coautor dessa evolução em todos os momentos.
Nesse sentido, a possibilidade de naturalização dos descendentes dos judeus sefarditas, não só está em linha com aquele que desde de 2006 é o espírito de abertura da Lei da Nacionalidade, como serve em pleno o propósito de correção possível de uma injustiça histórica e de séculos de crimes de Estado. Não acompanho, pois, de forma alguma, as reflexões que entendem que a alteração da Lei da Nacionalidade em 2013 foi um erro, nem subscrevo as ideias de que o regime foi desenhado como excecional ou transitório (o que se evidencia até pela diferença intencional face à opção dos nossos vizinhos espanhóis) ou que decorridos sete anos de vigência a reparação se pode considerar concluída.
Perante os factos que estiveram na origem da expulsão dos judeus sefarditas, impõe-se fazer justiça, devolvendo aquilo que foi esbulhado. Não foi sequer preciso conceber qualquer forma artificial de reparação, mas tão-somente restituir parte daquilo que com violência foi retirado. Aceite o princípio e o imperativo da reparação, a naturalização de quem demonstrar ser descendente de judeus sefarditas é um corolário lógico e inevitável
Assim sendo, o que tem motivado o debate em torno da necessidade de uma alteração? A resposta radica não em quaisquer propósitos discriminatórios dos seus autores (leitura abusiva e injusta e que nada contribuiu para o debate), mas na preocupação com o surgimento de casos em que, para alguns requerentes, mais do que uma vontade de recuperação da ligação negada aos seus antepassados, apenas se vislumbraria a obtenção de vantagens associadas a um passaporte da União Europeia com facilidades de visto em vários Estados, que já teriam dado nota da sua apreensão.
Não sendo nesses casos a motivação predominante da naturalização a realização do reencontro, não se conseguiria alcançar a ideia, que Rui Tavares descreveu nestas páginas, de que primeiro se faz justiça e só depois se reforçam os vínculos à comunidade. O que impressionou negativamente os autores da proposta, bem como os partidos que a votaram favoravelmente numa primeira apreciação (PSD e PCP), terá passado por aqui: o surgimento de casos em que à partida não haveria vontade, nem possibilidade de estabelecer a efetividade do vínculo de cidadania.
Em rigor, analisado à luz de um princípio de reparação assente na restituição de algo ilegitimamente removido, este facto não seria um problema em si mesmo para Portugal, não havendo forçosamente que escrutinar cada motivação individual. No entanto, é legítimo que mereçam ponderação os riscos de impactos na esfera de terceiros, designadamente as consequências junto das instituições europeias ou uma revisão da política de vistos em relação a Portugal, com consequências para outros Portugueses.
Um debate com este relevo jurídico, simbólico e axiológico merece um espaço de discussão porventura com mais abertura e tempo, não podendo a Democracia dispensar o fortalecimento que os procedimentos de participação na elaboração da lei garantem. Antes de avançar, importa ter a certeza de que o impacto da lei em vigor nas nossas obrigações perante a União Europeia ou as potenciais consequências para os acordos de isenção de visto têm de facto uma escala de intensidade tal, que só poderiam ser resolvidas através de uma alteração da lei.
Atenta a importância das demais alterações que estão em cima da mesa, e que permitirão o acesso a nacionalidade a um número mais alargado de pessoas nascidas em Portugal ou devolver a nacionalidade a quem a perdeu em anterior momento e ficou num limbo insustentável, há que evitar que esta questão atrase a entrada em vigor do que foi discutido na generalidade, recolheu contributos da sociedade civil e reuniu já um consenso parlamentar suficiente para a sua aprovação. Aceitando-se a ideia de manter inalterado o regime atual de naturalização de descendentes de sefarditas até final de 2021, temos uma janela de tempo para um diagnóstico detalhado e para procurar, aferindo da sua necessidade e com a participação de todos, soluções que salvaguardem um património que tanto tem valorizado Portugal ao longo dos últimos anos e de que nos devemos orgulhar sem hesitações, continuando a reparar uma injustiça histórica e trazendo de volta a casa todos os que quiserem connosco dar esse passo de reconciliação.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico