Covid-19: campos de confronto sobre dados e relações
A ocultação estatística é um traço comum aos regimes e projetos totalitários, acompanhada de outras falsificações.
A representante da Organização Mundial de Saúde (OMS) na Guiné Equatorial, Triphonie Nkurunziza, expulsa do país há alguns dias, aguarda restabelecimento das ligações aéreas para se retirar, enquanto a sede regional da OMS em Brazzaville lamenta a decisão do governo de Teodoro Obiang Nguema.
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A representante da Organização Mundial de Saúde (OMS) na Guiné Equatorial, Triphonie Nkurunziza, expulsa do país há alguns dias, aguarda restabelecimento das ligações aéreas para se retirar, enquanto a sede regional da OMS em Brazzaville lamenta a decisão do governo de Teodoro Obiang Nguema.
Conhecido pelo seu vincado perfil ditatorial e cleptocrático, este acusou a doutora Nkurunziza, ex-ministra da Saúde do Burundi, de falsificação de dados sobre a pandemia no país quando, na verdade, ela apenas coletava os diversos indicadores de covid-19 e comunicava à estatística da OMS. Aliás, pela mesma razão, o Burundi também expulsou em maio quatro técnicos desta agência da ONU, incluindo o representante, todos africanos.
A Guiné Equatorial é membro da CPLP desde junho de 2014 na sequência de lobby conduzido pela negóciopolitica dos então governos de Angola e Brasil, por diversas razões interessados na produção petrolífera equatoguineense.
A ocultação estatística é um traço comum aos regimes e projetos totalitários, acompanhada de outras falsificações. As fake news são as mais citadas, movimentando hoje milhões de robots em todo o mundo, mas há práticas menos sofisticadas.
Por exemplo, o Presidente da República da Guiné, Alpha Condé, convocou um referendo para mudar a Constituição e assim exercer um terceiro mandato. O ato decorreu em simultâneo com eleições locais e legislativas, sendo boicotado pelas principais forças da oposição em virtude da total falta de garantias. Como previsto a proposta foi aprovada. Mesmo assim, as autoridades de Conakry publicaram no diário oficial - e puseram em vigor - um texto diferente do submetido ao referendo. Entre as alterações, aumento dos poderes presidenciais e proibição de candidaturas independentes.
Não é só em África que têm sido feitas tentativas de eternização no poder.
Sem sair do Atlântico Sul e suas imediações em terras altas, o mesmo sucedeu na Bolívia, onde Evo Morales conseguiu autorização do Tribunal Constitucional para tentar um quarto mandato, porém, nas eleições de outubro de 2019, a meio da contagem dos votos constatou que iria à segunda volta com provável vantagem oposicionista. Então interrompeu-se a contagem e, ao voltar, os números estavam alterados, gerando mais uma das duras insurreições marcantes da História boliviana.
Pressão de rua com mortos, pressão militar com comunicados, eleições anuladas, Evo exilou-se e entrou um governo de transição. Como muitas vezes acontece quando uma corrente envereda pelo caminho do arbitrário e da anulação dos seus próprios princípios, é a corrente mais oposta que ocupa o poder. Na Bolívia, assumiu a presidência uma líder parlamentar de direita apenas para organizar novas eleições, porém, depressa mudou letra e espírito da transição aparecendo como candidata.
Carlos Mesa, de centro-esquerda, o mesmo que ia levar Morales à segunda volta, afirmou há dias que “ela usa o aparelho do estado tal como Morales”. Mesa é candidato de novo, desta vez contra a senhora Jeanine Añez e contra o candidato designado por Morales, Luís Arce. As eleições estão marcadas para 6 de setembro em virtude da pandemia.
Em França, pela mesma razão, a segunda volta das municipais passou de março para 28 de junho.
Esta pandemia não provoca apenas adiamentos eleitorais. Dá lugar a medidas de exceção, quase sempre necessárias mas sob risco de uso abusivo no futuro. Tal como o mundo tem andado nos últimos tempos não é risco desprezível, pois as tendências totalitárias estão num daqueles ciclos de reforço por todo o lado.
No entanto, este risco produz já três anticorpos. Grupos alternativos trabalham o rigor da estatística publicando números mais credíveis que os de governos falsários. Falava-se muito em crise da democracia e, de repente, a sua defesa passa a prioridade absoluta entre quem defende a harmonia nas relações humanas. O racismo voltou a ser visto não como fenómeno residual mas como ameaça maior a essa harmonia.
As recentes manifestações em todos os continentes contra o racismo apresentaram uma dimensão e composição acima do esperado pelos grupos supremacistas.
Este quadro anti-racista tem potencial para se constituir numa das bases de defesa da democracia. Em debate televisivo no Brasil, domingo passado, três conhecidos políticos democráticos – Marina da Silva, Ciro Gomes e Fernando Henrique Cardoso – deram à questão racial um grande primeiro plano nesse sentido.
Por outro lado, o volume financeiro previsto para as recuperações económicas vai obrigar a um monitoramento só possível com dados fiáveis. Até na popularidade dos governos.
São dois dos campos onde confrontos vão decorrer por bastante tempo.