Colegas homenageiam Beatriz Lebre. Num contexto de extrema violência, como se faz o luto e ultrapassa as múltiplas perdas?

O assassínio de uma jovem às mãos de um colega de mestrado deixou uma universidade em choque, onde esta quinta-feira acontece um momento de homenagem à vítima. Como se ultrapassa um crime hediondo quando este ocorre com pessoas que nos são próximas — tanto agressor como vítima?

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Beatriz Lebre é o centro de uma homenagem esta quinta-feira, entre as 18h e as 20h Joshua Sukoff/Unsplash

Rúben Couto frequentava o mestrado de Psicologia Social das Organizações no Instituto Universitário de Lisboa (Iscte) e confessou ter matado a colega Beatriz Lebre. O jovem foi detido a 28 de Maio, seis dias após a ocorrência do crime, e encontra-se em prisão preventiva. Já Beatriz Lebre, cujo corpo foi encontrado posteriormente, na última sexta-feira, no rio Tejo, junto ao Terminal de Contentores, em Santa Apolónia, Lisboa, é o centro de uma homenagem esta quinta-feira, entre as 18h e as 20h, que reúne o colectivo feminista Por Todas Nós e vários estudantes do Iscte, em Lisboa. Ao PÚBLICO, informou por e-mail a presidente do Conselho Pedagógico do Iscte, Joana Alexandre, a instituição “associar-se-á à homenagem através dos seus alunos, docentes, investigadores e funcionários que pretendam fazê-lo”, ficando “a reitoria e os órgãos de coordenação do Iscte disponíveis para receber os promotores da iniciativa”.

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Rúben Couto frequentava o mestrado de Psicologia Social das Organizações no Instituto Universitário de Lisboa (Iscte) e confessou ter matado a colega Beatriz Lebre. O jovem foi detido a 28 de Maio, seis dias após a ocorrência do crime, e encontra-se em prisão preventiva. Já Beatriz Lebre, cujo corpo foi encontrado posteriormente, na última sexta-feira, no rio Tejo, junto ao Terminal de Contentores, em Santa Apolónia, Lisboa, é o centro de uma homenagem esta quinta-feira, entre as 18h e as 20h, que reúne o colectivo feminista Por Todas Nós e vários estudantes do Iscte, em Lisboa. Ao PÚBLICO, informou por e-mail a presidente do Conselho Pedagógico do Iscte, Joana Alexandre, a instituição “associar-se-á à homenagem através dos seus alunos, docentes, investigadores e funcionários que pretendam fazê-lo”, ficando “a reitoria e os órgãos de coordenação do Iscte disponíveis para receber os promotores da iniciativa”.

Mas como se ultrapassa um crime hediondo que ocorreu com pessoas que nos são próximas, tanto agressor como vítima? Como se recolhem e colam os cacos? E quando isso ocorre com dois jovens da mesma turma que papel tem a instituição que ambos frequentavam na gestão do luto dos restantes alunos?

Maria do Céu Martins, conselheira do luto, com uma pós-graduação em Perda e Luto pela Universidade Católica Portuguesa, explica que, nestes casos, uma primeira resposta pode passar por “permitir espaços de homenagem”, uma vez que o que “ajuda a aliviar a dor e a sensação de perda é a partilha”. Algo a que o Iscte foi sensível ao criar uma “uma página pública no Facebook” com o objectivo de “homenagear Beatriz” e que “em quatro dias conta já com mais de 1500 membros que têm deixado mensagens dirigidas à Beatriz e à sua família”, relata Joana Alexandre.

O papel da instituição

A notícia sobre a morte de Beatriz Lebre chegou aos alunos do Iscte “assim que foi encontrado o seu corpo e confirmado o óbito: num primeiro momento essa comunicação foi feita pelo Conselho Pedagógico e num segundo momento pela senhora reitora”, recorda Joana Alexandre.

No entanto, a professora esclarece que ainda “durante a semana em que a Beatriz esteve desaparecida, foi feito um levantamento de necessidades: procurou falar-se com os colegas que lhe eram próximos, e os próprios alunos espontaneamente falaram com os professores que lhes são mais próximos”.

“Foram pensadas sessões em Zoom colectivas com os colegas da Beatriz e do Rúben, guiadas por professores com formação em psicologia clínica, mas os alunos optaram por falar individualmente ou em pequenos grupos com professores que lhes eram próximos”, esclarece.

O dar espaço e tempo é essencial para Maria do Céu Martins que avalia que, por um lado, nem todos vivem o luto da mesma forma ou ao mesmo tempo e, por outro, a maioria poderá estar ainda a reagir ao choque. “Aconteceu como uma surpresa, o que provoca choque — e sempre que há choque há trauma”, resume. O mais importante, diz, é “permitir que haja um espaço seguro de acolhimento”, algo que, explica, passa por aquilo que existem em todas as instituições: um gabinete de Acção Social, com um departamento de Apoio ao Aluno.

Foi precisamente com este gabinete do Iscte que “foi feita uma articulação (…), por forma a reforçar-se o apoio psicológico”. Além disso, explica Joana Alexandre, “o Iscte tem um protocolo com os SAMS, que tem uma clínica no campus para garantir a possibilidade de acompanhamento psicoterapêutico”, tendo ainda informado os “supervisores da linha de apoio psicológico [do SNS24] sobre a situação para que estes estejam atentos” e entrado em “diálogo imediato com a Ordem dos Psicólogos Portugueses, uma vez que são alguns dos seus membros que estão a fazer supervisão aos psicólogos que estão na linha”.

Múltiplos lutos

Beatriz Lebre tinha 22 anos (faria 23 no próximo domingo) e é descrita tanto pelo Iscte como pelos colegas e amigos que vão deixando mensagens no grupo de Facebook criado para o efeito como “uma pessoa que irradiava vida”. Além de alegre, divertida, bem-disposta, a jovem revelava uma atitude activa: tocava piano e fez parte do grupo de Teatro e do Coro do Iscte. Sobre o colega, Rúben Couto, de 25 anos, que confessou o crime nada é comentado, mas sabe-se que se dedicava ao voluntariado — esteve em Moçambique numa missão e fazia trabalho num canil —, que gostava de música e de cinema: publicou duas crónicas na secção Megafone do P3 sobre esses temas. E o choque dos jovens estará tão associado à morte de Beatriz, como à forma como esta aconteceu e a quem cometeu o crime — não perderam uma pessoa, mas duas.

“O grupo de turma sofre impacte, cada um mais ou menos, dependendo da relação que tinham com qualquer um dos intervenientes”, considera Maria do Céu Martins, que estima que haja neste contexto vários lutos além do da morte. “Nestas idades [dos colegas de turma], é normal ver o mundo como um espaço em aberto e como uma coisa boa”, constata. Mas, o contacto com esta realidade faz um corte abrupto com essa percepção, defendendo por isso que “as nossas escolas deveriam ter equipas multidisciplinares”. “Um caso destes pode deixar impactes fortes e duradouros”, defendendo ser essencial que os colegas recuperem “a segurança” e “a confiança” no mundo, na escola e uns nos outros.

A especialista em Perda e Luto alerta ainda para o facto de os sentimentos só se manifestarem mais tarde, dizendo ser essencial que haja alguém que possa “assegurar que as ansiedades são normais”, mas também que ajude a “encontrar formas para reagir a isso para que não se criem prisões à nossa volta”. “Para alguns bastará a partilha em família; para outros, será preciso outro tipo de ajuda.”

Também por isso, o Iscte, informou a presidente do Conselho Pedagógico, tem “planeada a realização de uma série de seminários, ao longo do ano lectivo de 2020/221, sobre os temas da violência de género e do luto”, estando a “a delinear iniciativas preventivas junto da sua comunidade”.

“Saído de um filme”

Em 2008, a morte de Alexandra Neno, na altura com 34 anos, assassinada no estacionamento junto ao condomínio onde vivia, na urbanização Real Forte, em Sacavém, concelho de Loures, deixou o seu grupo de amigos da faculdade em estado de choque. “A violência [do crime] foi a parte mais difícil de lidar”, recorda Fredy Vinagre, que mantinha, desde os tempos de estudo, uma relação próxima de amizade com a vítima. 

O crime foi associado a uma situação de carjacking, uma vez que a Alexandra Neno estava dentro do carro, um Mercedes-Benz SLK. Mas o autor só foi identificado cinco anos depois, tendo sido condenado a 25 anos de prisão — pela morte de Alexandra Neno, a 29 de Fevereiro, e de Diogo Ferreira, no parque de estacionamento de um centro comercial de Oeiras, já na madrugada de 1 de Março. 

À parte da perda, e ao fim de mais de 12 anos, Fredy Vinagre salienta o facto de tudo o que aconteceu ter parecido saído de um filme. “Achamos que estas coisas só acontecem nos filmes, que nem imaginamos que possa existir este tipo de violência nas nossas vidas.” A mesma sensação é confessada por Vera Freitas, colega de faculdade que se tinha aproximado de Alexandra Neno no último ano de vida da amiga. Ainda assim, apesar de menos íntima, fala da forma como o sucedido alterou a sua maneira de olhar o mundo: “[A situação da morte da Alexandra] não faz parte da realidade que vivemos; foi um acontecimento absolutamente impensável.”

No caso de Fredy Vinagre o choque teve como resultado muitos “medos e fobias” — “às tantas nem conseguia sair de casa” —, tratados com “muita terapia”. E, hoje, não se vê a perdoar quem cometeu o crime, mas ressalva ter dias em que consegue “fazer as pazes com o acontecimento”. Ainda assim, resume que o sucedido o “marcou para a vida” e estima que, no caso de Beatriz Lebre, “a vida de todos eles [colegas de turma] mudou para sempre”.

“Nunca passa”, conclui Vera Freitas. “Tenho absolutamente presente a cara da Xana (como era conhecida entre amigos), o riso da Xana, os momentos que passei com ela.”

com Bárbara Wong


Actualizado a 4/6/2020, às 22h03, com reacções de ex-colegas de turma de Alexandra Neno, assassinada a 29/02/2008