A Barbuda viveu no Mocambo, e tudo isto tem que ver com o fado
Cruzando a história da Madragoa com a da mãe da Severa, um livro lança um olhar minucioso sobre uma área de Lisboa onde o fado também cresceu.
Do nome Mocambo, muitos recordarão talvez uma certa marca de café que nos serrazinava os ouvidos com um jingle que mandava dizer “bom dia” com ele. Já o nome Barbuda remete para antigas memórias circenses (“vejam a mulher barbuda!”) ou para coisas que os dicionários vão, aos poucos, esquecendo. No de José Pedro Machado, tem quatro entradas; no Houaiss, reduz-se a uma; e no da Academia das Ciências de Lisboa, tem zero. Os dois primeiros consagram um mesmo significado: o de uma ave do Brasil. Mas barbuda é também nome de planta, de moeda ou de um capacete de ferro usado na Idade Média. Aliás, a moeda, do tempo do rei D. Fernando (1345-1383), só era conhecida por esse nome por reproduzir na sua face principal tal capacete, a que também chamavam celada. Mas há ainda outra Barbuda, a ilha que o furacão Irma quase destruiu em 2017; ou aquela que, na gíria, significa confusão. Como a que José Afonso usou na sua canção Teresa Torga, em 1975: “Que aproveitando a barbuda/ só pensa em fotografá-la”.
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Do nome Mocambo, muitos recordarão talvez uma certa marca de café que nos serrazinava os ouvidos com um jingle que mandava dizer “bom dia” com ele. Já o nome Barbuda remete para antigas memórias circenses (“vejam a mulher barbuda!”) ou para coisas que os dicionários vão, aos poucos, esquecendo. No de José Pedro Machado, tem quatro entradas; no Houaiss, reduz-se a uma; e no da Academia das Ciências de Lisboa, tem zero. Os dois primeiros consagram um mesmo significado: o de uma ave do Brasil. Mas barbuda é também nome de planta, de moeda ou de um capacete de ferro usado na Idade Média. Aliás, a moeda, do tempo do rei D. Fernando (1345-1383), só era conhecida por esse nome por reproduzir na sua face principal tal capacete, a que também chamavam celada. Mas há ainda outra Barbuda, a ilha que o furacão Irma quase destruiu em 2017; ou aquela que, na gíria, significa confusão. Como a que José Afonso usou na sua canção Teresa Torga, em 1975: “Que aproveitando a barbuda/ só pensa em fotografá-la”.
Mas não é de café nem de aves, plantas, moedas ou confusões (pelo menos dessas) que fala esta crónica, antes de um passado lisboeta que deixou marcas na nossa história, e em particular na história do fado. O pretexto (e fonte) é um livro recente, de alguém que estudou o tema a fundo por gosto e profissão, o arquitecto José Silva Carvalho, que tem investigado a área ocidental de Lisboa e que em Janeiro de 1991, a convite, formou e dirigiu o Gabinete Técnico da Madragoa. O título do livro, O Mocambo e a Esperança Pelos Tempos da Taberneira Barbuda (edições Caleidoscópio), junta, pois, esses dois nomes: o do lugar e o de certa personagem que o habitou. Que relevo tem, então, a Barbuda desta história? O facto de ter sido a mãe da Severa, quando serviu como taberneira na então Rua da Madragoa (hoje Rua Vicente Borga), onde a fadista nasceu.
Mas a história, que o autor do livro conta cruzando variadas fontes, começa muitos anos antes, quando em 1791 nasce em Ponte de Sor, no alentejano distrito de Portalegre, uma menina de nome Anna Gertrudes que, ainda jovem, veio a conhecer em Santarém Severo Manuel de Sousa e com ele casou, em 1815 (ganhando, por isso, o apelido “Severa”). A filha de ambos, Maria Severa, nasceu em 26 de Julho de 1820, não nos Anjos (em cuja igreja foi baptizada), mas na rua que viria a dar nome ao então bairro do Mocambo, a da Madragoa, onde Anna Gertrudes servia como taberneira e onde era conhecida por Barbuda. Tinop, na sua célebre História do Fado, descreve-a como “mulher de faca na liga, cabelinho na venta e língua de prata, uma fadistona que podia pedir meças às mais decididas, trigueira e mal encarada – um estafermo”. Grande parte dos relatos não lhe são favoráveis (“mulher temível, que tinha barbas como um homem”, “mulher façanhuda e extravagante”), mas há outros que de certo modo os suavizam, como o recolhido por Júlio de Sousa e Costa em 1896 (e publicado no livro Severa) junto de um serralheiro que conheceu Anna Gertrudes, e que a descreve como “gorducha, alta, de grandes seios, muito vermelha”, com “cabelo preto retinto e com um grande bigode que era o seu desespero”; todavia, afirma, “era uma bela mulher; o seu génio era terrível e falava mal como o diabo”.
Sousa e Costa ainda acrescenta que várias pessoas lhe afiançaram “que ela levava companheiras de desgraça, crianças famintas e mendigos às tabernas onde mandava que lhes dessem de comer e isto era notório”. Mas a maioria era impiedosa, como nota José Silva Carvalho: “Talvez por não ter a juventude nem a beleza da filha quando foi referida nos escritos posteriores, foi bem parca a tolerância que tiveram para com a pobre taberneira.”
Anna não cantava o fado, Maria sim. Do Mocambo à Rua do Capelão, na Mouraria, onde viria a morrer, passando pela Graça, pela Sé e pelo Bairro Alto, Maria Severa Onofriana tornou-se uma lenda do fado nos seus curtos 26 anos de vida. De Severo, o pai, não ficou rasto; e, da mãe, ficou só a imagem envilecida da Barbuda, taberneira e prostituta. Já do lugar onde esta história começou e que foi, escreve José Silva Carvalho, “num passado bem mais remoto que o século XIX, um sítio de referência que precedeu Belém como a antecâmara ribeirinha da cidade”, há inúmeras histórias e factos que o autor conta ao longo das 300 páginas do seu livro. Um olhar minucioso sobre uma área “menos referida e investigada” de Lisboa, onde o fado também cresceu.