Há famílias como as nossas e há as outras
Afinal, o vírus capaz de afectar qualquer ser humano, esteja ele onde estiver, é mais selectivo do que democrático.
A intenção do presidente da Câmara da Azambuja de estabelecer um cordão sanitário em redor de um prédio de um bairro social onde residem “famílias de etnia cigana” e outras “famílias normais como nós” tem tudo para ser uma excepção aviltante.
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A intenção do presidente da Câmara da Azambuja de estabelecer um cordão sanitário em redor de um prédio de um bairro social onde residem “famílias de etnia cigana” e outras “famílias normais como nós” tem tudo para ser uma excepção aviltante.
O autarca do PS só propõe um cordão sanitário neste caso porque não estamos a falar de “famílias normais como nós”, mas de nove cidadãos portugueses de etnia cigana que estão infectados, que o autarca quer confinar com os métodos bruscos de Wuhan, para “ficarem isolados dentro das suas casas, o que é difícil porque eles têm muitas crianças e andam constantemente na rua”. Uma espécie de recolher obrigatório étnico, portanto.
A inversão geográfica da evolução dos novos casos da covid-19 em Portugal tem-se concentrado nas comunidades de bairros pobres da Área Metropolitana de Lisboa, numa explosiva combinação de pobreza e de más condições de habitabilidade, incompatível com o teletrabalho ou com o distanciamento social eficaz.
Os focos localizados em Lisboa e Vale do Tejo, após o desconfinamento, não deram lugar a nenhuma medida de excepção, como aconteceu em Ovar, não só porque aqui o foco era de maior dimensão, mas também porque é consensual que o cordão sanitário tem efeitos secundários estigmatizantes. Que o digam os vareiros.
A forma como foram selados os cafés no Bairro da Jamaica, com polícia de choque e cobertura televisiva, só reforça a imagem negativa e estereotipada dos bairros sociais, esses guetos provisórios que se eternizam sem realojamentos à vista e a distância segura das famílias normais. Propostas como esta fazem inveja ao Chega e travam qualquer tentativa de combater a guetização dos bairros, alguns dos quais chegaram a ser solução para alojar a classe média sem o poder de compra exigido pelo mercado em plena euforia do turismo.
Afinal, o vírus capaz de afectar qualquer ser humano, esteja ele onde estiver, é mais selectivo do que democrático. O vírus que chegou a Lisboa vindo das estâncias de esqui da Suíça e ao Porto transportado desde a feira de calçado de Milão atingiu agora os mais frágeis entre os mais frágeis. Uma proposta deste género é um anátema culpabilizante da pobreza e discrimina minorias que, culturalmente, apesar de séculos de convivência, estamos habituados a estigmatizar sem pensar duas vezes. É o que acontece quando dividimos o universo entre nós e eles.