A covid-19 e a maioria silenciosa
Devido à incapacidade do sistema democrático em representar o seu silêncio, esta é uma maioria que se vai manter fora das preocupações de quem nos governa.
Esta pandemia tem revelado muitas coisas que estavam escondidas. Ou, pelo menos, que estavam meio-escondidas. O caso mais flagrante é o das desigualdades. O combate ao vírus tem exposto o carácter profundamente desigual das nossas sociedades. Há diferentes formas de desigualdade. Todas, porém, concorrem para reforçar uma mesma tendência. Questionam o princípio de igualdade. Quando se questiona a igualdade, está a questionar-se o princípio basilar da democracia. Daí que as desigualdades sejam um tema tão sensível nas nossas sociedades. Se se supõe sermos iguais, certamente perante a lei, mas também em termos de oportunidades de vida, como se justifica a reprodução de desigualdades e privilégios de classe? Deste ponto de vista, pode dizer-se que a covid-19 tem funcionado como uma grande força reveladora das desigualdades que, apesar de existentes, estavam escondidas. Mas será mesmo assim?
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Esta pandemia tem revelado muitas coisas que estavam escondidas. Ou, pelo menos, que estavam meio-escondidas. O caso mais flagrante é o das desigualdades. O combate ao vírus tem exposto o carácter profundamente desigual das nossas sociedades. Há diferentes formas de desigualdade. Todas, porém, concorrem para reforçar uma mesma tendência. Questionam o princípio de igualdade. Quando se questiona a igualdade, está a questionar-se o princípio basilar da democracia. Daí que as desigualdades sejam um tema tão sensível nas nossas sociedades. Se se supõe sermos iguais, certamente perante a lei, mas também em termos de oportunidades de vida, como se justifica a reprodução de desigualdades e privilégios de classe? Deste ponto de vista, pode dizer-se que a covid-19 tem funcionado como uma grande força reveladora das desigualdades que, apesar de existentes, estavam escondidas. Mas será mesmo assim?
Na realidade, só se vê o que nos é dado a ver. Só conseguimos ver e ouvir aquilo a que temos acesso. Quando não vemos pelos nossos próprios olhos, em casa ou no trabalho, vemos através da comunicação social. Por estes dias, vemos milhares de pessoas a saírem à rua nos Estados Unidos em protesto pela morte de George Floyd, um afro-americano de 46 anos de Minneapolis, às mãos de um polícia branco e pensamos: “Eis o resultado da desigualdade racial nos EUA.” E não estamos errados. Mas e tudo aquilo que nós não vemos? E todas as vozes que protestam em silêncio, um silêncio tão profundo que nunca as ouvimos? Será que silêncio é sinal de que está tudo bem? Ou será, antes, uma outra forma de exclusão e desigualdade?
A realidade é que as medidas de confinamento e distanciamento social, necessárias para limitar a propagação da covid-19, podem muito bem vir a aumentar ainda mais a distância social e a desigualdade. Porquê? Devido a tudo aquilo que a pandemia não nos deixa ver e ouvir.
Só ouvimos as vozes dos interesses organizados. Só prestamos atenção aquilo que nos dizem ordens profissionais e sindicatos. Mesmo dentro dos grupos representados por associações profissionais (médicos, advogados, enfermeiros, professores, etc.), damos mais ouvidos aos representantes do que aos representados, sobretudo quando estes últimos se queixam a partir da sua experiência pessoal e a título individual. Não estou com isto a dizer que a representação coletiva de interesses não seja imprescindível: claro que é. Mas não nos devemos esquecer de todos os interesses que não são organizados, de todos os interesses que não são representados de forma profissional. Quem representa os mais precários, os menos qualificados, os desempregados, os mais pobres dos mais pobres? Isto é tanto mais urgente em sociedades como a nossa, onde o acesso ao poder se vai cristalizando em torno de fórmulas bem conhecidas e oleadas.
Só ouvimos as vozes mais estridentes. A covid-19 pode vir a aumentar a desigualdade porque é mais fácil dar ouvidos aos que berram mais alto do que aos que se remetem ao silêncio. Não por não serem os que mais sofrem ou não serem quem tem mais razões de queixa. Simplesmente, porque o sistema não está habituado a ouvi-los. Neste ponto, como José Pacheco Pereira bem assinala num artigo recente, a nossa comunicação social tem uma grande quota de responsabilidade. A visibilidade dada a grupos profissionais em função do seu acesso privilegiado às redações dos jornais é sempre feita em detrimento de outros. Isto não significa que, por exemplo, artistas ou bolseiros de investigação não mereçam a atenção do Estado. Significa, isso sim, que esta atenção é dada em detrimento de outros grupos a quem ninguém dá ouvidos. Estes são grupos em que as baixas qualificações se somam a salários baixos e carreiras intermitentes: feiras, restaurantes, cafés, hotéis, etc. Nestes e em casos semelhantes, quando alguém se lembra deles, é muitas vezes sob a capa do preconceito social. Isto significa que se os primeiros são ouvidos com atenção e compaixão, os segundos são devotados ao esquecimento. Se isto é assim em tempos normais, é sobretudo assim em tempos de crise. Quem ouve, hoje em dia, essa multidão de precários e desempregados cujos postos de trabalho dependem do contato direto com o público?
Só ouvimos as vozes dos mais próximos. De facto, é mais fácil ouvir os que pensam como nós, aqueles que comem nos mesmos restaurantes, cujos filhos frequentam os mesmos colégios do que os nossos. Politicamente, o incentivo de ouvir os que estão mais longe de nós – ideologicamente, socialmente – é diminuto. Não dá votos, causa desconforto. O resultado é conhecido. Decide-se em circuito fechado. Os que são ouvidos são os destinatários, diretos ou indiretos, das medidas tomadas por quem decide. E, como só ouvimos aqueles em que confiamos e conhecemos, o circuito mantém-se vedado aos que vivem fora da nossa bolha.
Na prática, isto significa deixar de fora uma imensa maioria de pessoas. Todas aquelas que não nos são próximas, que não têm acesso facilitado aos jornalistas, que não têm os seus interesses representados de forma organizada. É assim que a exclusão e a desigualdade funcionam. Como sucede com qualquer problema social, a exclusão e a desigualdade só existem politicamente na medida em que podem ser observadas, medidas, discutidas. Se não as pudermos ver ou conseguirmos ouvir, a tendência é pensarmos que não existem. Ou que são pouco importantes. Erro crasso. O facto de serem invisíveis e silenciosas pode bem ser um sintoma de uma exclusão mais profunda e/ou de uma desigualdade estrutural. Deveria, portanto, ser uma razão suplementar para lhes darmos mais atenção. Mas a verdade é que o sistema não está desenhado para ouvir o silêncio. Para resolver problemas que não fazem manchetes de jornal.
Por isso mesmo, quem mais se arrisca perder com a covid-19 é esta maioria invisível e silenciosa. Quando não a própria vida, certamente muito do seu parco rendimento e alguma da sua já diminuta influência. Mas, precisamente devido à incapacidade do sistema democrático em representar o seu silêncio, esta é uma maioria que se vai manter fora das preocupações de quem nos governa.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico