A idade conta ou é um “faz de conta”?
Desafiar o deus Cronos e rejeitar a idade não me parece ser sensato. É contraproducente e um elevado risco social. O factor idade e a velhice podem ser encarados com orgulho, com estoicismo ou com pudor mas a velhice tem também algo de estético e de poético.
“Na minha idade, deveríamos conhecer os nossos próprios limites e esse conhecimento deveria contribuir para a felicidade”
Jorge Luís Borges (1899-1986, em “Um ensaio autobiográfico")
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“Na minha idade, deveríamos conhecer os nossos próprios limites e esse conhecimento deveria contribuir para a felicidade”
Jorge Luís Borges (1899-1986, em “Um ensaio autobiográfico")
Em “confinamento”, tenho acompanhado as notícias e usufruído de um privilégio: “o pensamento não ter paredes.” Sabemos que o efeito da idade dos humanos tem múltiplas dimensões: cronológica, biológica, psicológica, social, económica, cultural, sentimental… Para cada uma há um vasto acervo de análises, estudos, teses académicas e muitas opiniões pessoais. Apesar de não ser um especialista em qualquer das dimensões, há duas razões relevantes para ser sensível ao tema: ter participado (até há pouco) durante anos consecutivos na Direcção da Associação APRe! [1] e ser co-autor de um livro [2] sobre o envelhecimento em Portugal, editado em 2016 com uma boa aceitação. A actividade associativa e a procura de fundamentação para o livro proporcionaram uma sensibilidade especial e uma visão integrada do que é ser idoso e velho. Pode ser uma despedida mas foram dois os motivos concretos para escrever este texto.
1. Os mais idosos têm sido considerados um grupo de elevado risco relativamente à covid-19. Em Portugal, o “dever especial de protecção” dos maiores de 70 anos foi enunciado na fase de emergência e a presidente da Comissão Europeia (talvez falando como médica) disse numa entrevista: “Os contactos das pessoas mais velhas deverão ser limitados, pelo menos, até ao final do ano.” Identifiquei um desejo de salvar vidas e não uma proibição total de movimentos no exterior, mas levantaram-se protestos de personalidades portuguesas defendendo a dignidade e a liberdade, o que, em abstracto, eu apoio. Alguns declararam-se “saudáveis” para não concordarem com essa especial protecção e para denunciarem a ameaça de uma discriminação injusta e perigosa. Muitos invocaram o idadismo que a APRe! tem vindo a combater. Na verdade, a idade influencia um seguro de vida, um empréstimo bancário, um aluguer de casa para habitar e até, em alguns locais, o aluguer de uma viatura para viajar. Ou a sobrevivência após uma fractura de um osso. Eu próprio não gosto de renovar a carta de condução de dois em dois anos. Mas também há a face positiva nos descontos em transportes públicos e em cinemas. Como as aparências podem iludir, tinha de averiguar o fundamento da medida de protecção especial.
Ler e ler é o método aconselhável quando há a possibilidade de procurar informação credível. Na internet há milhares de artigos científicos. Os resultados estatísticos são avassaladores: 95% dos óbitos na Europa tinha mais de 60 anos e 50% mais de 80 anos (H. Kluge, director regional da OMS-Europa, em 2/4/20); 90% dos óbitos tinha mais de 65 anos: 44% entre 65 e 79 anos e 46% com mais de 80 anos (boletim do ECDPC de 8/4/20); em 14 países a percentagem de hospitalização após infecção duplicava a partir dos 70 anos (ECDC da OMS em 25/3/20). As razões para uma vulnerabilidade acrescida (para maiores de 65-70 anos) parecem depender do vírus e de mudanças fisiológicas associadas à idade: decréscimo da função imunitária (imunossenescência) e multimorbilidades ou doenças crónicas (H. Kluge em 2/4/20). Da leitura de um texto do Dr. J. Luis Telles (PÚBLICO de 15/5/20) conclui-se o mesmo.
Infelizmente, cerca de metade dos óbitos ocorreram em solidão nos designados lares. Uma dor enorme para os familiares. É razoável pensar que nessa situação (em muitos países) a protecção poderia ter sido mais eficaz. Mas se os utentes fossem jovens o resultado teria sido outro. Os efeitos em unidades navais militares (com centenas de infectados) e nas instalações de migrantes são esclarecedores.
Quanto a idosos saudáveis, Portugal não está em boa posição na Europa. Aos 65 anos, a esperança média de vida é de cerca de 20 anos mas a esperança de vida saudável é só da ordem de 7,5 anos. Um “confinamento” é entediante e a falta de exercício e de contactos físicos é prejudicial para a saúde. Os maiores de 65-70 anos podem usufruir da liberdade de movimento mas com redobrados cuidados de protecção. Existirem alguns recuperados com idades muito avançadas deve ser considerado como excepção e não como regra. Parafraseando um grande filósofo do séc. XVII, pode-se dizer que quando a razão conhece e aceita a causa de uma limitação como o mal menor, então sente-se livre. Os que já viveram mais são os mais dotados para serem adultos conscientes.
2. A carta de uma leitora do PÚBLICO (em 16/5/20), com o título “Proíbo que me chamem idosa”, foi o catalisador para este meu texto. Fiquei perplexo e preocupado. Respeitando a opinião de cada um, não concordo nada com o título e menos ainda com o conteúdo. Ancião, sénior, velho, longevo, idoso, anoso, adulto de longa duração ou vetusto são designações à nossa disposição consoante o contexto ou o estilo. Mas idoso não é sinónimo de senil ou decrépito e não deve ser considerado como depreciativo nem motivo de inferioridade. Em resultado do aumento da esperança de vida, a OMS definiu os 60-65 anos como fronteira de um novo grupo etário. Uma conquista da Humanidade.
Em Portugal é adoptado o termo idoso. À laia de provocação, o texto da carta inclui uma lista de personalidades bem conhecidas, desde Marcelo Rebelo de Sousa até ao Papa Francisco, com a pergunta se são idosos. A minha resposta é a mesma para todos: sim. Não são os números que pesam mas sim o muito que durante séculos foi transmitido por escritores. De Cícero, em “Catão o velho, ou diálogo sobre velhice” (44 a.c.), um texto acutilante que diz o fundamental sobre o assunto, a “La Vieillesse” de Simone Beauvoir (1970) com 816 páginas, que foi uma pedrada no charco em pleno séc. XX. Teria de escrever muito para dar conta dos inúmeros e belos textos sobre os velhos e a passagem do tempo. De O. Wilde, Proust, Hemingway, Gabriel Garcia Marquez (“O amor nos tempos de cólera”) ou Clarice Lispector (conto “Ruído de Passos”) e tantos outros...
Desafiar o deus Cronos e rejeitar a idade não me parece ser sensato. É contraproducente e um elevado risco social. O factor idade e a velhice podem ser encarados com orgulho, com estoicismo ou com pudor mas a velhice tem também algo de estético e de poético. Termino com uma pequena parte de um poema de F. Pessoa/Ricardo Reis (Odes, “Mestre, são plácidas”, 1914):
“Envelhecemos. Saibamos, quase maliciosos, sentir-nos ir.”
[1] Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!)
[2] M. do Rosário Gama, A. Betâmio de Almeida e A. Dias da Silva, 2016, Os Sonhos não têm Rugas, Oficina do Livro, 215p.