Sombras de fraude em tempo de pandemia
Pesem todas as emergências que preenchem as agendas das autoridades públicas, nelas deveria estar inscrita uma entrada sobre o combate à fraude. Por maioria de razão agora, em que se fala de o país poder vir a receber da parte da União Europeia, a fundo perdido, uns milhares de milhões de euros.
Não foi notícia de abertura no jornal televisivo. A peça apareceu alinhada algures no meio deste. O caso é de fácil descrição: uma empresa usufruindo do regime de “lay off” estava a funcionar normalmente, como referiram perante as câmaras, sob anonimato, funcionárias da mesma. Estava-se em meados de abril. De então para cá, idênticas situações vieram sendo conhecidas – algumas em primeira mão –, cada vez com menos destaque nos meios de comunicação social.
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Não foi notícia de abertura no jornal televisivo. A peça apareceu alinhada algures no meio deste. O caso é de fácil descrição: uma empresa usufruindo do regime de “lay off” estava a funcionar normalmente, como referiram perante as câmaras, sob anonimato, funcionárias da mesma. Estava-se em meados de abril. De então para cá, idênticas situações vieram sendo conhecidas – algumas em primeira mão –, cada vez com menos destaque nos meios de comunicação social.
A pandemia, com as emergências que despoletou e os recursos financeiros que o Estado se viu obrigado a disponibilizar para lhes acudir, criou o ambiente propício para o surgimento de atuações fraudulentas tendentes à apropriação indevida de tais recursos.
Duas notas para reflexão sobre este tipo de comportamento antissocial. A primeira salienta o facto de que situações como a descrita não merecem da parte dos cidadãos, em geral, a expressão de qualquer tipo de repúdio. Puxa-se o assunto à conversa, a resposta é um encolher de ombros ou, quando muito, um “já era de esperar”. Como se comportamentos fraudulentos fossem uma espécie de defeito social genético que não é passível de ser controlado; como se os fundos que estão a ser roubados não fossem de todos, mas sim de um “Estado” com o qual ninguém se relaciona. O comportamento dos media a propósito de tais situações reflete, em si mesmo, esse desinteresse. Nas semanas que se seguiram à situação descrita, o que efetivamente constituiu notícia foram os casos de atraso na atribuição daquele regime a empresas que o haviam solicitado, devido ao controlo imposto pelos organismos públicos. Não existe, pois, qualquer tipo de censura social que possa funcionar como travão à ocorrência de tais comportamentos.
A segunda nota estende o que se acaba de referir. Para além da ausência do dito constrangimento social, não parece existir, também, um freio penal que possa servir para desincentivar a prática desses comportamentos. Com efeito, não se duvida que situações como a descrita, por vezes pela pressão dos media, originem o levantamento e instauração de processos de infração pelos órgãos a quem incumbe tal tipo de fiscalização. No entanto, o cidadão comum fica com a sensação de que tudo termina aí, eventualmente com uma pequena coima, raramente chegando a tribunal. Mesmo quando este último é o destino do processo, essa sensação continua presente, antecipando-se que chegar a esse ponto é mais de meio caminho andado para que a “coisa” não dê em nada, seja pela morosidade dos processos, que muitas vezes conduz à prescrição destes; seja pelas inúmeras escapatórias processuais, que advogados habilidosos utilizam para evitarem uma condenação. Quantos casos de condenações por fraude e apropriação de dinheiros públicos ocorreram na última dezena de anos? Talvez os dedos de uma mão sobrem para os contar.
Os portugueses não são defraudadores por natureza. Se a prevalência da fraude em Portugal é maior do que em boa parte dos países europeus a razão não está nos genes dos seus cidadãos, mas no contexto legal e social em que os portugueses se movem. Não deve a sociedade iludir-se: só será possível condicionar o crescimento das situações de fraude se existir penalização, monetária e/ou de privação de liberdade, que seja de tal dimensão que faça o potencial defraudador, que vê no ato da fraude a possibilidade de obter proventos sem esforço, pensar duas vezes antes de enveredar por tal atuação. Tenha-se presente que a fraude não é um ato irracional, cometido por alguém num momento de raiva ou de descontrolo. Não, pelo contrário: é um ato racional, pensado, em que os ganhos e perdas esperados são colocados nos pratos da balança.
No sentido de facilitar a perceção do que está em jogo na adoção de comportamentos fraudulentos ilustre-se, em termos algébricos, como essa racionalidade tende a ser exercida. Considere-se GEF o ganho esperado da fraude, líquido de eventuais penalidades; MF o montante da fraude, o valor bruto que o defraudador arrecada; VP o valor da penalidade (definida em unidades monetárias) no caso de ser condenado; PA% a probabilidade de ser apanhado (definida em %); PC% a probabilidade de um “apanhado” ser condenado (definida em %). Pode enunciar-se, então, que
GEF = MF – (PA% × PC% × VP)
Ou seja, a possibilidade de os poderes públicos constrangerem a ocorrência da fraude é por via de intervenções nas componentes do “fator desincentivador” (PA% × PC% × VP): seja porque aumentam o número e âmbito das fiscalizações e, desse modo, elevam PA%; ou porque as instâncias judiciais passam a efetuar um maior volume de condenações entre os casos apanhados, contribuindo para aumentar PC%; ou ainda porque aumenta o valor da penalidade, VP.
Assuma-se, por pressuposto, que VP = MF = 1000, isto é, a penalidade é igual ao montante da fraude. Poderá parecer que nesta situação o potencial defraudador se encontra numa situação de indiferença, pois o que tem a ganhar é igual ao que tem a perder. Em termos de expetativas – não esquecer que o potencial defraudador está a ponderar se deve avançar ou não – tal resultado só seria verdadeiro se PA% e PC% fossem, ambos, iguais a 1 (ou 100%). Ora, é utópico pensar que se atinjam estes valores. Tendo em consideração a perceção que se possui para o caso português, face ao volume de condenações por fraude conhecidas, admita-se que PA% = 30% (estimativa otimista pensar que 30% de todas as fraudes são detetadas); e que PC% = 10% (pensa-se que é também otimista pensar que 10% dos apanhados são condenados). Neste contexto, GEF = 1000 – (30% × 10% × 1000) = 970, ou seja, em termos esperados, seria deveras compensador incorrer na fraude, dada a dimensão da expetativa de ganho.
Pode parecer que há algo de errado com as contas, tal é a vantagem calculada. Não há. Na situação ilustrativa proposta, como apenas 10% dos apanhados são condenados, isso significa que, no conjunto de todas as fraudes, apenas 3% dos defraudadores são condenados. Portanto, as instâncias judiciais, ao terem um funil muito apertado nas condenações, não contribuem para desincentivar, em termos de valor esperado, a perpretação da fraude. Tenha-se presente que mesmo que os serviços de fiscalização apanhassem todos os casos de fraude (PA = 100%), para o referido valor de PC%, GEF seria igual a 900. A alternativa para inverter a situação, num contexto em que é limitado o volume de condenações, seria colocar o VP num montante tão elevado que GEF passasse a ser negativo. No caso em discussão, mantendo MF = 1000, seria necessário que VP fosse superior a 33333 (cerca de 34 vezes maior que MF!). Ou seja, o VP teria de ser de tal modo grande que qualquer potencial defraudador ao pensar nele não deixasse de sentir um arrepio de medo e, com isso, optasse por “não ir a jogo”.
Sim, caro leitor, sinto que ficou arrepiado com a alternativa proposta. Não porque seja potencial defraudador, mas porque, lá no fundo, está a pensar que tal proposta é “anti qualquer coisa”, pois os defraudadores, sejam entidades singulares ou coletivas, também têm direitos. Pergunta-se: será que tal proposta constrange os direitos das entidades que cumprem as suas obrigações de cidadania? Pode entender-se que esse seu menear de cabeça pretendeu significar um “não”?
Pesem todas as emergências que preenchem as agendas das autoridades públicas, nelas deveria estar inscrita uma entrada sobre o combate à fraude. Por maioria de razão agora, em que se fala de o país poder vir a receber da parte da União Europeia, a fundo perdido, uns milhares de milhões de euros. Ainda não se sabe quando e em que condições tais fundos serão atribuídos (assumindo que o serão) e já se nota no ar uma certa euforia a “dinheiro fresco”, já se marcam posições para aceder ao bodo, já se percebe em alguns olhares o brilho especial de “não podemos perder a oportunidade”. Oxalá que estas perceções não passem de ilusões sensoriais com que a mente do autor destas linhas o atraiçoa propondo-lhe cenários conspirativos. Porém, a história contemporânea portuguesa apresenta um quadro ilustrativo de muito más práticas quando se tratou de aplicar “rios de dinheiro”. Entre as coisas que medraram nessas alturas esteve, com destaque, a ocorrência de fraudes e o locupletamento ilícito. Desta vez, há uma agravante: vendeu-se a ideia de que se trata de “dinheiro grátis”. A justificação pessoal para a adoção de comportamentos fraudulentos é ainda mais fácil de encontrar por parte dos defraudadores.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico