Havemos de ir ao futuro?
Precisamos de um modelo de fundo, justo e comprometido, por parte do Estado, que priorize a legislação laboral, o apoio à organização da classe artística, a dignificação da Arte enquanto profissão, um financiamento sério e realista, a descentralização das dinâmicas de criação e oferta culturais.
Há uma sede inadiável de mudança no sector cultural em Portugal, rumo a um futuro onde “hão-de estar todos juntos” e onde não fique “finalmente tudo como dantes” (relembrando um tocante poema da Filipa Leal). Diz-se que é preciso dar um passo decisivo em frente, que está a chegar o momento crucial, que se impõe uma viragem, que é urgente uma efectiva inscrição da Cultura na agenda política nacional. Não obstante termos herdado uma tradição demasiado longa de atraso paralisante a esse nível e agora nos depararmos com um contexto de transição pandémica em que o foco do Poder e das instituições tem estado na prevenção, higiene e segurança — dois factores que condicionam sempre a implementação de mutações muito significativas no curto-prazo —, é premente a emissão responsável e comprometida de sinais fortes por parte de quem tem responsabilidades públicas e capacidade decisória nesta área, os quais: garantam níveis básicos e dignos de subsistência aos profissionais e estruturas do sector; apoiem a aplicação de regras, sensatas e realistas, da DGS para a reabertura de espaços e contextos performativos; e iluminem e configurem um renovado e esperançoso caminho para a Cultura e as Artes.
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Há uma sede inadiável de mudança no sector cultural em Portugal, rumo a um futuro onde “hão-de estar todos juntos” e onde não fique “finalmente tudo como dantes” (relembrando um tocante poema da Filipa Leal). Diz-se que é preciso dar um passo decisivo em frente, que está a chegar o momento crucial, que se impõe uma viragem, que é urgente uma efectiva inscrição da Cultura na agenda política nacional. Não obstante termos herdado uma tradição demasiado longa de atraso paralisante a esse nível e agora nos depararmos com um contexto de transição pandémica em que o foco do Poder e das instituições tem estado na prevenção, higiene e segurança — dois factores que condicionam sempre a implementação de mutações muito significativas no curto-prazo —, é premente a emissão responsável e comprometida de sinais fortes por parte de quem tem responsabilidades públicas e capacidade decisória nesta área, os quais: garantam níveis básicos e dignos de subsistência aos profissionais e estruturas do sector; apoiem a aplicação de regras, sensatas e realistas, da DGS para a reabertura de espaços e contextos performativos; e iluminem e configurem um renovado e esperançoso caminho para a Cultura e as Artes.
Neste contexto sensível e complexo, muito se tem questionado sobre a permanência da actual ministra e a sua resistência ou não à pressão massiva do sector cultural e artístico, bem como às exigências decorrentes de uma conjuntura excepcional que desnudou ainda mais aquilo que já era frágil e precário, e que acabou mesmo por escancarar as portas de um “país-circo” em que são os “palhaços pobres” — expressão certeira da jornalista do Público Inês Nadais num artigo publicado há dias — que agora, sem máscara, esgotam a vasta plateia deserta de público, sem distanciamento (ou, melhor dizendo, equidade) social que lhes valha. Aliás, é esse cumulativo histórico, feito de indefinição e adiamento, que, em última análise, tem feito cair a maioria dos que têm assumido a pasta da Cultura nos diferentes governos, sejam eles oriundos deste universo ou figuras mais associadas à esfera política e não necessariamente “do meio”.
Se em algumas áreas da sociedade a conduta do sector público face ao novo coronavírus tem sido bem mais eficaz e consistente, no que concerne ao campo cultural — e não obstante algumas medidas positivas e esboços de boas intenções numa fase inicial — o Estado tem reagido, no cômputo geral, de forma desajustada, incoerente e revelando alguma desorientação interna. Perante a gravidade da conjuntura é imperioso esperar mais deste Governo, num posicionamento determinado quer de estancamento urgente da sangria que corre a céu aberto na comunidade artística quer, paralelamente, de cisão evolutiva com um “antes” marcado por uma discursividade não raras vezes retórico-fantasiosa e uma intervenção limitada de diminuído efeito real, apanágio de sucessivos elencos governativos (com honrosas excepções). Por vezes até com doses acentuadas de “criatividade”, já assistimos no passado longínquo e recente a uma panóplia de cenários que não desejamos rever: avanços e recuos repentistas nas medidas, experimentações “imaginativas” (sem auscultação/diagnóstico prévio efectivo e/ou sem consolidação de práticas a posteriori), visões/concepções gerais (auto)centradas na realidade restrita dos principais centros urbanos, estudos respeitáveis e aturados (mas sem consequência) enviados para a gaveta do esquecimento, planos intelectualmente intocáveis (mas sem sentido prático, sem conhecimento profundo da realidade nacional e/ou sem uma adequada e concertada mediação e acompanhamento ao nível local), um tentador “chutar a bola para a frente” ou “passar a batata quente”, manobras de “ilusionismo”, megalomanias pontuais de cariz exibicionista, etc.
De facto, se tivéssemos de caricaturar, uma das situações mais habituais nestas últimas décadas prende-se com o anúncio de projectos de maior fôlego, de iniciativa governamental, que do ponto de vista teórico e conceptual estão bem estruturados e defendidos ao nível da argumentação e pertinência, mas que depois, numa análise mais rigorosa em malha fina, se verifica não estarem previstos recursos, nomeadamente financeiros, que viabilizem a sua realística e eficaz concretização prática no terreno, remetendo-se essa responsabilidade não poucas vezes para as autarquias e outros agentes locais, com resultados desiguais. Acresce a isso o facto de ser frequente patentearem uma ausência de articulação afinada, real (e não apenas aparente) e verdadeiramente operativa, no terreno, entre a área da Cultura e outros ministérios, como a Educação, a Ciência, o Ambiente ou a Administração Interna, só para citar alguns casos. Em regra, são propostas que depois acabam por ter uma vida curta e/ou um alcance limitado no plano nacional, ainda que em diversos casos bem-sucedidas nos poucos contextos em que se consegue realmente implementá-las, sendo esses exemplos depois amplamente mediatizados, de forma legítima, pelo Estado como boas-práticas. Mas, não obstante o impacto positivo nessas realidades específicas, no cômputo geral vários desses meritórios projectos culturais não vieram, pelas razões acima apontadas, diminuir de forma significativa e abrangente assimetrias e carências estruturais quando se olha numa óptica macro para o território português continental e insular.
Soma-se a este quadro, do outro lado, uma mistura difusa entre incapacidade e imobilismo do próprio sector cultural e do heterogéneo universo artístico para se organizarem, reivindicarem e persistirem de um modo consistente, continuado e unificado na luta pela aspiração fundamental: o estatuto legal do artista e demais ofícios das artes do espectáculo e do audiovisual, a questão da intermitência laboral, a protecção social no desemprego/doença/aposentação; para já não falar, entre outros, do tema da rigidez da administração pública face à integração de novas funções neste campo. Acresce uma lacuna gritante já por demais identificada e que vem na sequência do que afirmámos anteriormente: um diálogo efectivo e fecundo entre as áreas educativa e cultural, que permita que esta última se torne um dos pilares incontornáveis da formação e desenvolvimento cognitivos, emocionais e intelectuais dos cidadãos e, assim, do florescimento de espíritos informados, participantes, curiosos e críticos, que valorizem ao longo das suas vidas — inclusive em funções políticas se for o caso — a tolerância, a diversidade, a solidariedade, a ecologia, a empatia, o humanismo, as artes.
Sabemos também que uma eventual mudança de ministro não vai resolver, per se, as questões de fundo com que o meio cultural se debate há muito. Aliás, a pouca memória (positiva) que guardamos dos vários ministros ou secretários de Estado nesta pasta específica nos últimos tempos não se justifica tanto pelo facto de os seus protagonistas terem mais ou menos ideias ou currículo/experiência, ou de estarem mais ou menos ligados umbilicalmente à área cultural, mas sim por um chip ou viés ideológico mais vasto, fundo e estrutural que tem regido, como que veladamente, um certo subconsciente político e que acaba depois também por condicionar, anular e “engolir” (nos bastidores do Poder, na praça pública) os que tentam introduzir um gesto disruptivo no modus operandi instalado ou propor um movimento sério de contra-corrente. Já voltarei a este tópico central.
A Cultura deve ser, a propósito, um dos universos que provavelmente geram maiores dissensos quando se discute o perfil mais adequado de governante: enquanto uma facção, de inegável expressividade, se inclina para a ideia de que é essencial ter alguém reconhecido pelos seus pares da área cultural-artística, com provas dadas no terreno, à frente do ministério, outros desconfiam profundamente dessa visão e preconizam que o peso político da figura e a sua amplitude de ligações e influências junto do Poder são o factor determinante no sucesso e continuidade no cargo, e que — há aqui um claro preconceito latente — um intelectual ou artista não serão à partida bons timoneiros. E nesta simples abordagem binária tende-se a esquecer algo absolutamente fulcral: que o sistema cultural não pode ser polarizado nem percepcionado de modo dualista, ou votado a uma determinada “caixa”/rótulo sem vasos comunicantes com outros sistemas. Isso cria uma visão perigosamente redutora, espartilhada e subalternizada para a Cultura que não a inscreve no quotidiano das pessoas, que a isola socialmente e que não é consentânea com a sua natureza intrinsecamente (inter-)sistémica, com o seu cariz dinâmico e transnatural, com a sua vocação profundamente relacional e assente no binómio interacção-alteridade.
Mas vamos à questão central, ao “pecado capital” se quisermos, que se situa no domínio político-ideológico e também simbólico: o Estado central e o sector público têm-se pautado, não obstante alguns progressos isolados em sentido contrário, por uma intervenção, grosso modo, centralista, a qual, numa perspectiva histórica, tem raízes antigas e se intensificou a partir dos inícios do século XIX, sendo que o regime democrático instaurado em Abril de 1974 não alterou substancialmente esse estado de coisas (como sublinha António Barreto num estudo fundamental de 1984 publicado na revista Análise Social). Ao longo dos anos posteriores foi-se verificando inclusive um aumento gradual de vários mecanismos que reforçam essa tendência ao nível da concentração de poderes e competências. Essa inegável propensão da governação traduziu-se na construção de uma cultura política (com valores, pensamentos, desejos, percepções) divorciada da Cultura em lato sensu. E, entre outras implicações, foi-se consolidando, como que tacitamente, uma relação pragmática e simbólica com o campo das Artes baseada, em larga medida, em dois vectores centrais que ilustram uma convivência problemática, intermitente, silenciosa e pouco harmonizada entre o menu das políticas públicas e o meio criativo.
Um deles, amplamente conhecido, consiste num intervencionismo estatal marcadamente assistencialista e dominado, ao nível central, pelas dimensões subsidiária e burocrática, assente numa lógica formatada, unificada e quantitativa, e usando como instrumento-recurso principal as linhas de apoio financeiro, a máquina regulamentar dos procedimentos concursais e os critérios de avaliação/pontuação. Não obstante a relevância óbvia do mesmo, fazer do financiamento, ao longo dos anos — e mesmo este, ironicamente, de um modo pouco ambicioso e subnutrido, como a realidade foi demonstrando às claras em diversos momentos (mas já lá vamos) —, o estandarte-mor, ou seja, o rosto mais visível, preponderante e, de certo modo, “instrumentalizado” da intervenção do Estado no campo das artes acabou por revelar quase sempre uma abordagem despida de visão estratégica, unívoca, desactualizada e não maximizada.
Esta tendência não tem contribuído para uma organização e capacitação efectivas e estruturantes do sector artístico nem, assim, para uma desejável evolução também qualitativa do mesmo, as quais possam reforçar a sua credibilidade pública e atenuar precariedades e desigualdades enfocando com prioritário denodo nas questões da profissionalização, da condição laboral, das relações de trabalho e num factor absolutamente essencial e pouco discutido: a preservação (e não a compressão, condicionada por buriladas e não poucas vezes irrealistas prerrogativas concursais) sensível e cuidada do tempo - ainda mais numa era vertiginosa como a que vivemos - para o planeamento, criação, questionamento, experimentação e maturação artísticos.
O outro vector, intimamente ligado ao primeiro, consiste, simbolicamente, numa percepção política, amplamente enraizada, de que a Cultura constitui um sector não essencial — emergindo aqui, não poucas vezes, a retórica trafulha e perigosa de comparar este universo com outras áreas tidas tradicionalmente como prioritárias — e de que as Artes estão conotadas com uma lógica, secundarizada, de ludicidade e entretenimento. Neste âmbito, o apoio do Estado à comunidade artística é percepcionado como um item/rubrica orçamental acessório, eminentemente encarado do lado exclusivo da despesa — e não como um investimento (não contabilizável ou redutível unicamente a uma folha de excel) na “vida do espírito”, na criatividade que reinventa os dias, até numa ecologia emocional. Essa concepção que o Poder tem vindo a demonstrar, ora mais velada ora mais explicitamente, ganha amiúde contornos populistas e imediatistas que, mormente em fases de contracção e retraimento económicos, é urgente pôr a nu e combater de modo a evitar/prevenir manipulações oportunistas e uma fragilização socioeconómica e menorização simbólica ainda maiores do sector.
Este paradigma genérico de actuação do Estado acabou, indirectamente — como reflexo perverso —, por lhe conferir de algum modo, nas entrelinhas, um controlo silencioso sobre o sector cultural e a comunidade artística ao longo do tempo, mais visível ainda em períodos de crise. Na verdade, a intervenção das sucessivas tutelas tem-se feito, em grande medida, ao sabor das circunstâncias e da maior ou menor pressão externa e críticas de que são alvo em cada momento — algumas inversões bruscas de decisão mais recentes face à pandemia são bem ilustrativas disso, entre outros exemplos mais antigos —, disponibilizando então o Estado mais ou menos recursos/condições e gerando maiores ou menores expectativas no meio artístico (e isto não tem sido linear, frise-se) em função de variáveis que têm a ver com a própria reacção, mais ou menos fervorosa, do sector às suas medidas e/ou com a visibilidade pública e impacto mediático dos diversos interlocutores e reivindicações em causa.
No fundo, o aparelho estatal tem sido o epicentro e, ao mesmo tempo, um produto do seu próprio modus operandi: a não inclusão da Cultura na primeira linha da acção política. E essa desvalorização foi tendo como consequências, junto da opinião pública e da própria comunidade artística, um inevitável desgaste/cansaço e, mesmo que não evidente, um adormecimento letárgico das mesmas, com a disseminação crescente de uma visão céptica e mais resignada dentro e face ao sector cultural, consubstanciada em ideias genéricas e impressionistas de larga circulação social que todos conhecemos: os artistas são um grupo permanentemente insatisfeito de subsidiodependentes; a Cultura é, acima de tudo, uma fonte de despesa; por comparação, existem áreas mais prioritárias na sociedade nas quais é imperativo investir; o meio artístico é economicamente pouco produtivo; é difícil demonstrar a todos a importância da Arte; etc. (In)conscientemente, o Poder tem sido, assim, embalado e “legitimado” por essa mundividência (que inclui não poucas falácias e distorções), acabando, na verdade, por acentuá-la através da sua própria inacção/passividade, numa espécie de “coerência/alinhamento” acríticos, não assumidos, com chavões que se foram vulgarizando e banalizando junto do tecido social e do imaginário colectivo ao ponto de se tornarem quase verdades absolutas, como que um destino inexorável, tipo: “é o que temos e pronto”.
Mas emerge aqui, porventura, a contradição maior. Face ao que afirmei, poderá parecer um contra-senso o facto de assistirmos a um crónico subfinanciamento do sector cultural por parte dos vários governos nos últimos 20 anos, mas na verdade tem sido precisamente esse já habitual défice que tem alimentado (perversamente) o próprio sistema, que lhe tem conferido um “sentido” (inócuo), que, de certo modo, o tem sustentado (mesmo que seja por pontas). Assim, como está permanentemente à míngua e num potencial estado de carência económica e de saturação psicológica que lhe vai retirando ímpeto/frescura e pondo em causa os alicerces/viabilidade de muitas estruturas e projectos, o meio artístico encontra-se invariavelmente numa posição de enorme dependência relativamente ao oxigénio financeiro do Estado e, assim, às flutuações do seu temperamento — e, nestes dias, à sua sensibilidade solidária. Este panorama tem acentuado, mesmo que tantas vezes “discretamente”, desigualdades, injustiças e assimetrias – algo que é suposto os governos amenizarem e não incrementarem — e não estimula, de todo, um maior empoderamento dos vários agentes culturais. Isto não obstante algumas estruturas artísticas profissionais terem desenvolvido ao longo do tempo — ainda que representem um universo mais ou menos restrito numa perspectiva nacional — estratégias, mais ou menos conseguidas conforme os casos, de auto-sustentabilidade, diversificação de fontes de receita/financiamento, ampliação de parcerias e de redes informais de colaboração, as quais lhes vão conferindo uma autarcia relativa e flutuante.
Todo este status quo não deixa de explicar, na sua medida, a não resolução de lacunas antigas como a regulamentação profissional, a qual viria autonomizar mais o sector artístico em relação ao amplexo estatal, conferindo àquele maior robustez, coesão, confiança e independência, e, consequentemente, poder simbólico e relevância sociopolítica. Ao invés, esse modo inoperante de fazer “política cultural” foi-se instalando e hoje é, salvo poucos casos, transversal não só à relação do Estado com o universo das artes como também à forma como aquele gere os próprios organismos públicos que tutela (direcções-gerais, direcções regionais e outras estruturas), os quais têm vindo a ser gradualmente enfraquecidos e subtraídos ao nível dos recursos humanos e logísticos, da autonomia de gestão, das competências, dos orçamentos internos, da capacidade de envolver e dialogar com os territórios e as comunidades.
Aliás, a questão da autonomia (também) assume aqui uma dimensão paradoxal com várias facetas. Por um lado, a autonomia deveria ser uma premissa política para a gestão artística e financeira dos espaços de criação e difusão artísticas, algo que, por exemplo, não parece emanar da Lei n.º 81/2019, de 2 de Setembro, que cria a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses, na qual o partido actualmente no Poder se absteve de modo incompreensível. Mas, por outro lado, o mesmo documento — que parece ter passado ao lado de grande parte do sector e nomeadamente dos próprios teatros públicos e privados (e espaços/contextos similares), que não foram, de resto, amplamente auscultados como seria expectável e pertinente — revela novamente um Estado que continua a encarar o sistema cultural como um sector “autónomo” (no sentido de desligado de uma realidade mais global), homogéneo, delimitado e fechado, visão esta que se mostra claramente desactualizada e datada como já sublinhámos, e que descura as profundas transformações que têm vindo a ocorrer nos processos de produção e nas modalidades de fruição no campo das artes performativas. No final desta reflexão recuperarei esta questão.
Mesmo no seio do próprio organograma governamental há indícios que evidenciam claramente uma intermitência e indefinição políticas face ao domínio cultural. A já tradicional oscilação/indecisão entre períodos políticos em que é criado um Ministério da Cultura e outros em que é proposta uma Secretaria de Estado da Cultura (esta, em regra, como uma espécie de “anexo” formalmente prestigiante mas, no fundo, intrinsecamente depauperado do gabinete do Primeiro-Ministro) é paradigmática a este nível, descredibilizando pública e simbolicamente o sector. Para já não falar — insisto neste ponto — da tímida representação e falta de margem de manobra da área cultural na zona-chave de decisão e na sua incapacidade, por falta de legitimação interna da liderança governativa, de interagir e colaborar de forma profícua e consistente com os demais ministérios, de estabelecer relações (mais do que de “Cultura” trata-se, na verdade, de “Relações Culturais” como expressão mais adequada, como já apontou António Pinto Ribeiro), de fomentar sinergias, de criar/cimentar camadas de colaboração intersectoriais. Essa dimensão relacional da Cultura é afinal, como já salientado, inerente à sua própria natureza sistémica e complexa, e a sua preservação reveste-se de uma importância vital para uma maior agilidade e eficácia políticas da respectiva tutela, de modo a que se supere, a vários níveis, um crónico medo de existir que tem acabado por minar, mesmo que sem grandes explosões, todo um sistema.
Precisamos de um modelo de fundo, justo e comprometido, por parte do Estado, que priorize a legislação laboral, o apoio à organização da classe artística, a dignificação da Arte enquanto profissão, um financiamento sério e realista, a descentralização das dinâmicas de criação e oferta culturais. Só assim, e não parcelarmente, se edificará um sistema cultural de alicerces sólidos que, mesmo perante intempéries diversas, demonstre coesão, segurança, sustentabilidade, margem de crescimento, esperança – uma hipótese de futuro. Isto para que deixemos de encarar a política pública para a Cultura, metaforicamente, como uma embarcação aparentemente bem engalanada e vistosa mas sem mantimentos e sem bússola, que vai navegando à vista, amiúde ao sabor da corrente e que, quando as águas se agitam mais, lança (por vezes prontamente, noutras com enorme atraso, mas sempre timidamente) uma bóia aqui, dois coletes ali, três pequenos botes de salvamento mais além a uma plêiade cada vez mais numerosa de faróis criativos à deriva.
Este olhar crítico não rasura a existência de navegadores (leia-se “profissionais”: dirigentes intermédios, técnicos e outros colaboradores) dentro da administração central e das suas ramificações regionais que têm feito um trabalho admirável de resiliência e criatividade, procurando manter o foco e o entusiasmo apesar dos inúmeros constrangimentos já identificados. Nem, por outro lado, a crescente afirmação da criação artística como uma área de inegável relevância, ousadia e qualidade, reconhecida dentro e fora do país, e como um das forças motrizes do sistema democrático. Nem tão pouco esquece múltiplas dinâmicas autárquicas que, de modo regular, dedicado e numa lógica de proximidade, têm assegurado, com os recursos existentes, um crescente acesso das populações à recepção cultural, mesmo que, aqui e ali, em moldes e com motivações e resultados heterogéneos.
Para haver mudanças estruturais, que não acontecem de um dia para o outro, o Estado terá assim de abdicar gradualmente de um posicionamento marcado, em grande medida, por três lógicas dominantes: uma mundividência instrumentalmente subsidiária/quantitativa em torno da Cultura; uma intervenção ainda muito autocentrada, que assenta as suas medidas num movimento, predominantemente unilinear, de cima para baixo; e uma abordagem de gabinete ainda pouco conectada com as idiossincrasias e heterogeneidades do vasto e ecléctico universo cultural nacional, nomeadamente com as suas tonalidades, estratos e nuances mais micro (locais) e periféricos. E terá de resistir a visões (e práticas) ainda muito enraizadas no seio de certo institucionalismo público, erradicando atitudes de desconfiança, preconceito, indiferença e até, por vezes, de manifesto desconhecimento relativamente ao funcionamento e evolução actuais do sector artístico e das suas dinâmicas/modulações. E terá de usar o financiamento como um instrumento potenciador (entre outros) e não como um tentador mecanismo centralista e controlador, não como uma ladainha (gasta) para adormecer a plêiade de espíritos irrequietos e rebeldes da Cultura. De pouco ou nada servirão os inúmeros discursos e planos que exaltam calorosamente o direito constitucional de acesso democrático à oferta cultural, que o Estado tem a obrigação de garantir aos cidadãos, se aquelas premissas não forem tidas em conta.
Os apoios financeiros para a Cultura são, na verdade, “apenas” uma parte (relevante, sim) do icebergue como sabemos. Mas sem base estratégica, compromisso e dignidade (o valor do humano) para o sector, por mais orçamento e linhas de financiamento que o Estado disponibilize não avançaremos de forma consistente, preventiva (face à cada vez maior incerteza do futuro), sustentada, ambiciosa (e não rendida às tímidas “expectativas mínimas” que nos habituámos a associar ao universo cultural e à ideia de que a Cultura pode pouco). Espera-se um olhar governamental (não umbiguista) que efectivamente repare à sua volta, que enxergue mais longe, que enfoque no médio-longo prazo e não apenas na urgência do aqui e agora, que faça do longe aqui. E aqui a invenção maior a operar em Portugal é claramente política (nas várias acepções do termo), como, entre outros, Tiago Rodrigues, director artístico do TNDMII, apontava num texto recente.
Para concluir, retomo a temática da rede de teatros e cine-teatros portugueses (RTCP), que também deveria estar na ordem do dia e não pode de forma alguma ser olvidada no actual timing. O documento legislativo publicado em Setembro de 2019 aguarda por regulamentação, a qual deve ocorrer até Junho deste ano, e é imprescindível que o sector cultural em geral e os municípios e meio artístico em particular se manifestem, de modo organizado, influenciando a sua redacção final, visto que a proposta de lei aprovada pelo Parlamento em pleno Verão passado levanta várias questões essenciais e revela alguns problemas de fundo. Neste âmbito, a massa crítica composta por gestores culturais, directores artísticos e programadores deve estar activamente envolvida neste debate, impondo-se na actualidade um mais visível, regular e afirmativo lugar de fala colectiva da mesma na esfera pública. Isto para além da notória necessidade/utilidade de uma maior concertação e organização socioprofissionais destas funções correlatas em termos de representatividade e de dignificação e valorização simbólica junto do Poder, das instituições, da comunidade artística e da população em geral. É de frisar aqui, em jeito de parênteses, que tem faltado em Portugal uma pertinente pedagogia informal, junto da opinião pública, em torno destas (e de outras) novas profissões culturais e da sua natureza, escopo e tipo de intervenção. Ainda se verifica um considerável desconhecimento sobre as mesmas, inclusive dentro do próprio aparelho do Estado, o que, sobretudo em fases de maior recessão económica e hiper-sensibilidade social como a que atravessamos presentemente, pode dar azo também a discursos populistas pouco informados, levianos e até preconceituosos, como por vezes se vai constatando ainda que mais pontual e timidamente.
O advento da pandemia e todo o seu impacto disfórico inclusive na Cultura e nas Artes criaram, indirectamente, uma certa amnésia relativamente à aludida RTCP, relegando-a para um plano “não urgente” (por comparação com a covid-19) e deixando-a num limbo entre esquecimento, cepticismo, desconhecimento e indiferença, a julgar pela parca e morna reacção pública, mormente do universo autárquico e da comunidade artística, à publicação do diploma em Diário da República. Este facto não deixa, aliás, de ser ilustrativo e preocupante, pois traz-nos à memória a imagem, já abordada nesta reflexão, de um estado como que semi-anestesiado do sector, reflexo também de uma indesmentível inércia estatal.
Acima de tudo, considero que é imperativo garantir a função primacial de serviço público cultural dos equipamentos integrantes da rede e salvaguardar a sua desejável imunidade relativamente a tentações centralistas, contingências circunstanciais e instrumentalizações locais. Por outro lado, a lei, sendo um importante contributo para o sector, não poderá enfermar de uma concepção datada como parece evidenciar, desde logo quando assenta a sua matriz naquilo a que, por analogia, na gíria linguística chamaríamos de “sinédoque”: (neste caso) tomar a parte pelo todo. Ou seja, encarar (redutoramente) o teatro ou o cine-teatro como os paradigmas únicos de contexto em que se enquadram as artes do palco. Observando em maior zoom a realidade nacional, e não obstante a inegável relevância cultural desses equipamentos disseminados por todo o país, podemos identificar, paralelamente, outras tipologias de espaços, estruturas, plataformas, projectos e acontecimentos — “formais” ou não, convencionais ou não, abrangentes ou mais especializados do ponto de vista da oferta; e mainstream, segmentados/alternativos ou híbridos quanto à(s) linha(s) estética(s) privilegiada(s) — que têm vindo a protagonizar dinâmicas plurais e heterodoxas de produção, criação, difusão e recepção artísticas, enformando um macro-ecossistema fecundo e criativo ao qual esta lei não deverá ser alheia. O que está entre, isto é, as próprias zonas de diálogo, intersecção e complementaridade culturais entre esse universo performativo (que alimenta e traduz ligações interdisciplinares frequentes com outras linguagens, como as artes plásticas, a fotografia, a literatura, o cinema) e a galáxia de teatros/cine-teatros constitui um território igualmente fértil a não descurar numa esperada visão de conjunto.
Partindo destas duas premissas nucleares, só representará uma mais-valia uma proposta legisladora de efectiva abrangência nacional e de supressão de lacunas estruturais, esbatendo assimetrias ainda facilmente identificáveis. Uma lei que enfoque em seis dimensões centrais: a profissionalização, através da necessária qualificação e formação actualizada dos recursos humanos que constituem cada equipa (da técnica à frente de casa, direcção de cena, produção, educação/mediação cultural e comunicação); a autonomização da direcção artística; a implementação de uma programação artística regular regida por critérios de qualidade, inovação e diversidade, que integre também uma vertente colaborativa e trabalho em rede; a alocação de um orçamento específico, adequado e realista que viabilize essa programação; a definição de um projecto de educação e de mediação cultural consistente que privilegie a formação de públicos; e uma garantia de efectiva equidade geográfica — ainda que, a meu ver, com uma discriminação positiva, devidamente fundamentada, de contextos periféricos e territórios de baixa densidade (identificados no Programa Nacional para a Coesão Territorial) — na credenciação dos equipamentos culturais, bem como na consequente aplicação dos programas de apoio estatal às programações que o diploma prevê.
Todos os que integram o sector cultural, do Governo às autarquias, dos artistas aos programadores, das estruturas/associações aos teatros, têm aqui uma oportunidade privilegiada de deixar uma impressão digital transformadora neste tempo difuso mas também desafiante, de empreender uma pegada essencial de amor próprio, de fazer da Cultura e da Arte uma familiar (e não estranha) forma de vida e de reconhecer o papel do outro nesse processo. A tradição intelectual europeia produziu, como base do pensamento moderno, uma construção baseada na separação entre natureza e cultura, algo que, por exemplo, povos como os ameríndios desconhecem. A postura dominante do Estado, que tem assentado, como vimos, num pêndulo paradoxal entre centralismo/controlo e desresponsabilização face à Cultura, é, no fundo, mais um reflexo desse paradigma que tem provocado, à escala global, múltiplos curto-circuitos, crises convergentes e desequilíbrios ao nível da ecologia (humana e natural).
Essa redução simplista da complexidade do mundo esquece o facto de estarmos, sim, perante um sistema labiríntico e interdependente de “naturezas-culturas” (como aponta Bruno Latour), e, nesse sentido, o nosso principal desafio consistirá num movimento de reconexão daquilo que nunca esteve, na realidade, separado (natureza e cultura). Reitero este ponto: as práticas culturais e artísticas actuais não podem ser encaradas isoladamente, de modo estanque e adinâmico, nem a partir de dualismos, polarizações e limitações intransigentes que lhe são estranhos e que ignoram a sua matriz-vocação. Face a perigosas ideologias que pretendem afastar esses dois mundos, temos muito a aprender com as cosmovisões indígenas e tradicionais. Um líder Sioux da América do Norte afirmava que todas as coisas estão ligadas e que não foi o homem que teceu a trama da vida, sendo apenas um fio dentro dela, e que tudo o que ele fizer à teia estará fazendo a si mesmo. Vivemos tempos exigentes aos quais teremos de responder com a urgência e energia de um colectivo comprometido, cuja argamassa dos dias seja uma (re)ligação vital entre empatia e ética, que resista ao individualismo. Para a invenção de um dia claro para a Cultura.