Pausa para respirar
E a vida lá prossegue. Anormal, como sempre. Resta-nos que este momento traga, ao menos, alguma sobriedade.
Foi numa dessas pausas para respirar das informações sobre a pandemia e os seus efeitos. Andava à procura de um texto e tropecei nela: uma entrevista feita há treze anos a Robert Wyatt, admirável cantor inglês de 75 anos, que se encontra agora retirado. Ele que foi sempre politicamente empenhado, lutando por mudanças, e passou por situações dramáticas, como um acidente em 1973 que o deixaram paraplégico e numa cadeira de rodas para sempre, expressa uma emoção por estar vivo contagiante.
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Foi numa dessas pausas para respirar das informações sobre a pandemia e os seus efeitos. Andava à procura de um texto e tropecei nela: uma entrevista feita há treze anos a Robert Wyatt, admirável cantor inglês de 75 anos, que se encontra agora retirado. Ele que foi sempre politicamente empenhado, lutando por mudanças, e passou por situações dramáticas, como um acidente em 1973 que o deixaram paraplégico e numa cadeira de rodas para sempre, expressa uma emoção por estar vivo contagiante.
Percebe-se que é alguém inquieto com os destinos do mundo, movido por uma curiosidade infinita, mas que é também capaz de aceitar os seus paradoxos, guardando momentos para se maravilhar com a vida. E fá-lo, como na sua música, com justeza e serenidade, sem recorrer à exibição sentimental, como está em voga nos dias em que a fronteira entre privado e público se diluem e como na sua condição outros poderiam ser tentados a fazer. “Às vezes esquecemo-nos que os jornais não dizem tudo. O céu à noite. Bebés que nasceram. Momentos com amigos. Acabar um livro. Andar de mão dada com alguém. O desejo de saber que nunca se esgotará, ao contrário dos recursos do planeta. E tudo isso não faz parte das notícias do dia.”
É isso, sim. Às vezes esquecemo-nos. Há dias outro inglês, o veterano artista plástico David Hockney, 83 anos, numa pequena entrevista, lembrava-o também, expondo que apesar das más notícias por todos os lados e das contradições quase diárias à volta da pandemia e do seu rasto imenso de consequências, havia uma boa nova que era a chegada da Primavera e, no seu caso concreto, a possibilidade de admirar e pintar pereiras, macieiras, cerejeiras e ameixoeiras em flor. Eu sei. É fraco consolo para quem anda em círculos, com renda para pagar, a conta que chegou de surpresa pelo correio, o dinheiro que não basta para nada, o familiar no hospital, o acordar de madrugada, a atitude profissional que tem de ser impecável, o passar horas no trânsito e o assinar abaixo-assinados contra isto e aquilo. A luta sistemática para não se desistir e manter-se à tona.
Talvez os mais indefesos não tenham possibilidade de ver a Primavera como Hockney. E muitos dos privilegiados não estão sequer preparados para a sentir, em desconexão com o que está a sua volta e com os outros, presos à mercantilização de cada recanto da sua existência e à competitividade como racionalidade da época, sem tempo e espaço para pensar, conhecer, entender ou celebrar. Já se percebeu nestes dias. Transformações estruturais na ordem capitalista não vão acontecer. As elites não o desejam. Os vulneráveis lutam para sobreviver. E os intermédios agarram-se ao que têm, em vez de pensarem em mutações.
E a vida lá prossegue. Anormal, como sempre. Resta-nos que este momento traga, ao menos, alguma sobriedade, e que a pornografia material de alguns seja refreada. Quem sabe, dessa forma, possamos alcançar, como Robert Wyatt, que se o medo de perder o emprego é real e em nenhum momento pode ser subestimado, também não é menos certo que aquilo que nos faz sentir vivos, a música, a arte, o imaginar, o contemplar o horizonte, ou uma boa conversa, por difícil que seja, também não deverá ser esquecido.
E se não estivermos em condições de nos lembrar, é bom ter alguém ao lado que nos recorde, porque é fácil estar com os outros na estabilidade, o difícil é mantermos-mos próximos dos que numa determinada fase estão alheados, embora esse talvez seja o tempo em que mais precisam de alguém. E para o entender basta recordar as alturas em que por mais que quiséssemos também não conseguíamos vislumbrar a simples comoção de existir.