Felizmente há Mrs. Fletcher
A protagonista não procura o crime, ele é que tem uma tendência bizarra para ocorrer sempre que ela está presente, o que é bastante suspeito.
Esqueci-me da ideia para um livro policial que haveria de me tornar rico. É muito azar. Sei lá eu quando me voltará a surgir semelhante ideia milionária. Não tem ajudado ver de enfiada os episódios de Crime, Disse Ela, uma série dos anos 1980 que teve uma extraordinária longevidade. São três quartos de hora bem passados, é certo, mas convenhamos que a qualidade e a complexidade do enredo deixam algo a desejar.
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Esqueci-me da ideia para um livro policial que haveria de me tornar rico. É muito azar. Sei lá eu quando me voltará a surgir semelhante ideia milionária. Não tem ajudado ver de enfiada os episódios de Crime, Disse Ela, uma série dos anos 1980 que teve uma extraordinária longevidade. São três quartos de hora bem passados, é certo, mas convenhamos que a qualidade e a complexidade do enredo deixam algo a desejar.
Acresce que, quase sempre, há um elemento qualquer fundamental que não nos é revelado, o que nos impossibilita de resolver o crime mais cedo ou, pelo menos, traçar uma ou duas teorias plausíveis. Nunca é possível, pois Jessica B. Fletcher, a protagonista bonacheirona e já entradota, sabe sempre algo que escolhe só revelar no fim, tornando simples o que se afigurava como um quebra-cabeças inultrapassável e despachando em meia dúzia de minutos o que esteve a empastelar durante meia hora.
Bem sei que a protagonista é ela e não nós, que a série existe para ela brilhar, mas cheira-me a demasiado preguiçoso manter o espectador na ignorância até ao fim. Lembro-me de há uns anos ter lido um livro de uma colecção chamada 1001 Detectives, da Caminho, em que os autores paravam a narrativa em certo ponto para que os leitores pudessem reflectir e chegar às suas conclusões. Havia até um postal agarrado ao livro para quem quisesse presentear a Caminho com teorias próprias. Fiquei sem saber como se deslindava esse mistério: as páginas finais do livro tinham sido arrancadas pelo dono anterior.
Guardar os segredos todos para o fim também é muito uma mania do Poirot, se bem que mais tolerável nos livros do que nos filmes e séries, porque ler a escrita de Agatha Christie é, por si só, um prazer tão grande como descobrir o assassino. Sucede que essa particularidade irritante dos detectives famosos é também muito viciante. E tal como era irresistível ver com o meu pai os episódios diários do Poirot — apesar de ele religiosamente se queixar de os finais serem sempre demasiado rocambolescos —, também há uma atracção inexplicável pelas aventuras da simpática Mrs. Fletcher.
Os episódios têm sempre, mas sempre, a mesma estrutura. A protagonista não procura o crime, ele é que tem uma tendência bizarra para ocorrer sempre que ela está presente, o que é bastante suspeito. Não pode a senhora ter umas férias descansadas em Nova Iorque, no Canadá ou na vila em que habita, Cabot Cove, que há sempre alguém que se deixa assassinar. Ao fim de duas ou três temporadas seria de supor que os criminosos já soubessem que talvez não fosse boa ideia cometer homicídios na presença de Fletcher, mas a série tem dez ou 11 temporadas, o que não abona nada a favor da inteligência dos assassinos americanos.
Para lá de ter este dom extraordinário de estar no sítio certo à hora certa, a protagonista consegue sempre, mas sempre, que o tenente ou sargento da polícia local a deixem participar na resolução do crime. Há dois tipos de autoridade: o polícia condescendente que até tem simpatia pela senhora e a deixa dar uns palpites; o polícia que acha que ela só atrapalha e que faz questão de lhe dizer a cada duas frases que a vida real não é como os livros de mistérios que Fletcher escreve.
Em ambos os casos, os agentes caem sempre na esparrela de prender a pessoa errada e de ter a teoria incorrecta. O que eles pensam é frequentemente linear — A matou B para fugir com C —, quando é óbvio que o episódio ainda tem mais 20 minutos pela frente e que a teia tem de ser mais complexa.
Decorre tudo com grande urbanidade. Poucos minutos depois do crime, familiares e amigos da vítima já secaram as lágrimas, os suspeitos prosseguem com a sua vida normal e Fletcher anda por ali, saltitando de personagem em personagem, fazendo perguntas indiscretas com a maior naturalidade, apelidando os polícias de incompetentes a cada passo. Como todo o diálogo é polido e cheio de salamaleques, ninguém se ofende com nada e até os insultos acabam em risota entre as partes.
Onde é que eu ia? Ah, pois. Continuo sem me recordar da ideia para um policial que me surgiu há semanas. Mas não quero correr o risco de me tornar aquela personagem de um dos episódios de Crime, Disse Ela, um dramaturgo frustrado que se torna crítico de teatro e, mais tarde… Bom, não conto mais. Felizmente havia Jessica.