O valor moral da comunicação
Sem confiança, nenhuma mensagem, por mais verdadeira e sensata que seja, logra informar e formar, educar para as novas realidades e orientar para novos comportamentos.
O eclodir da pandemia desencadeou uma ânsia quase obsessiva por informação, que veio a ser perturbada por um crescendo de inconsistências, quando não mesmo de contradições entre as afirmações divulgadas, o que foi gerando suspeição, rejeição e finalmente indiferença perante a generalidade das notícias. A percepção da deterioração da qualidade da informação rompeu a comunicação entre responsáveis pela gestão da crise sanitária e alguns cidadãos, muitos dos quais tendem hoje a sentir-se mais aliviados pelo descarte da informação do que carentes de comunicação. Perdeu-se, assim, o valor moral da comunicação enquanto base para a construção da confiança.
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O eclodir da pandemia desencadeou uma ânsia quase obsessiva por informação, que veio a ser perturbada por um crescendo de inconsistências, quando não mesmo de contradições entre as afirmações divulgadas, o que foi gerando suspeição, rejeição e finalmente indiferença perante a generalidade das notícias. A percepção da deterioração da qualidade da informação rompeu a comunicação entre responsáveis pela gestão da crise sanitária e alguns cidadãos, muitos dos quais tendem hoje a sentir-se mais aliviados pelo descarte da informação do que carentes de comunicação. Perdeu-se, assim, o valor moral da comunicação enquanto base para a construção da confiança.
Este processo começou timidamente ainda no mês de Março, quando a pandemia se instalou em Portugal, e cada um de nós se confinou aos órgãos de comunicação social e redes sociais. Alguns dias se passaram de notícia em notícia, absorvendo-se tudo o que se via, ouvia e lia, numa súbita literacia em ciências biológicas e da saúde que não aliviavam alguma depressão que as dúvidas sobre o presente e a incerteza sobre o futuro aprofundavam. Entretanto, à medida que o tempo passava começaram a evidenciar-se as primeiras discrepâncias relevantes.
Recordamos todos a doutrina profilática das máscaras: da dúvida da sua eficácia para a advertência da sua não utilização, daí para a recomendação do seu uso e depois o seu emprego obrigatório. O mais elementar bom senso reconheceria que a existência de duas barreiras à eventual projecção do vírus seria melhor que nenhuma.
Recordaremos também a previsão do pico infeccioso para a segunda semana de Abril, depois fins de Maio, de seguida para meados de Junho, tendo afinal ocorrido na primeira semana de Abril. A mais básica prudência aconselharia coibição de declarações taxativas no então amplo desconhecimento da doença. E temos bem presentes, nas últimas semanas, as advertências quase esquizofrénicas do ‘fique em casa’ e vá ‘almoçar fora’ que, não obstante pronunciadas em contextos diferentes, disfarçam mal a insegurança na conciliação entre dois valores sociais, a saúde e a economia.
Na passagem da fase de perseguição de informação para a da confusão instalada tivemos também discrepâncias sobre as possibilidades de propagação do vírus, por exemplo da mãe para o recém-nascido, através do leite materno, ou entre todos através de uma diversidade de superfícies, dos equipamentos urbanos aos sapatos de cada um. Tivemos ainda um potencial concurso de disparates sobre novas terapêuticas em que, para além da mais séria mas nefasta hidroxicloroquina, desfilaram a ingestão de bebidas orgânicas, detergentes, alho e ervas, aspersão do corpo com álcool e lixívia ou radiações ultravioleta, suster o fôlego durante dez segundos, a par da rejeição da tecnologia 5G como causadora da infecção...
E tudo isto amplificado por criminosas declarações presidenciais e difusões anedóticas de ‘influencers’, ‘instagramers’, 'youtubers’ e ‘bloggers’. Não, não está tudo no mesmo plano, mas tudo soma para a desconfiança que se tem propagado e que esta semana se agravou com as afirmações de dois directores da OMS, no mesmo dia, acerca de uma segunda vaga infecciosa, menos provável para um e podendo disparar a qualquer momento para outro. E perante o medo da segunda vaga e a desconfiança da comunicação que se lhe refere, desliga-se e prossegue-se no regresso ao normal.
É verdade que muito pouco se sabia sobre a covid-19 e a investigação científica se processa também pela revisão de certezas; é verdade que afirmações descontextualizadas podem induzir numa falsa contradição; é verdade que as redes sociais servem muitos pequenos interesses particulares, numa total ausência de responsabilidade social. Mas nenhum destes aspectos é suficiente para justificar as incongruências da comunicação oficial que se deve saber elevar a estes e outros desafios, mantendo-se válida e fiável.
A comunicação é um bem precioso fundado no conhecimento objectivo, construído na sua transmissão tão rigorosa quanto acessível, e multiplicado pela adesão dos destinatários. A prova da sua qualidade é a confiança que granjeia. Sem confiança, nenhuma mensagem, por mais verdadeira e sensata que seja, logra informar e formar, educar para as novas realidades e orientar para novos comportamentos.