União Europeia = solidariedade = 26 mil milhões de euros
Uma construção europeia que ganha “cimento” à custa de transferências financeiras é (muito) frágil. Implica políticas que limitam as opções nacionais, em matéria económica e social — é a chamada condicionalidade —, o que não é um aspecto menor.
1. Não sei se muitos portugueses já se questionaram sobre as razões pelas quais a Suíça, a Noruega e a Islândia nunca entraram para a União Europeia, nem sequer têm processos de negociações de adesão em aberto. Na lista dos candidatos à adesão estão, nesta altura, a Albânia, a Sérvia, a Macedónia do Norte e a Turquia — esta última há um longo tempo. Por sua vontade, até já seriam todos provavelmente membros da União Europeia. Em contraste, no caso da Suíça, nunca houve sequer uma intenção de adesão à União Europeia.
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1. Não sei se muitos portugueses já se questionaram sobre as razões pelas quais a Suíça, a Noruega e a Islândia nunca entraram para a União Europeia, nem sequer têm processos de negociações de adesão em aberto. Na lista dos candidatos à adesão estão, nesta altura, a Albânia, a Sérvia, a Macedónia do Norte e a Turquia — esta última há um longo tempo. Por sua vontade, até já seriam todos provavelmente membros da União Europeia. Em contraste, no caso da Suíça, nunca houve sequer uma intenção de adesão à União Europeia.
No caso da Noruega, existiram duas candidaturas e processos negociais concluídos, nos anos 1970 e 1990. Todavia, em ambos os casos, a adesão foi rejeitada em referendos pela população. Quanto à Islândia, a candidatura efectuada há cerca de uma década foi retirada pouco depois pelo próprio país. Mesmo aqueles que nunca se questionaram muito sobre este assunto têm provavelmente percepção que a Suíça, a Noruega e a Islândia estão entre os países mais ricos do mundo. Em todos eles a qualidade de vida é superior à da média da União Europeia. Não é um dado menor para a falta de atracção pela União.
2. A questão vem a propósito da solidariedade (financeira). Entre nós, se tivéssemos de encontrar a palavra mais usada para definir a União Europeia no discurso público — nem necessitaríamos de inquéritos de opinião, ou de qualquer estudo científico para saber qual é —, seria certamente “solidariedade”. O cidadão comum pode não saber nada sobre a política e a economia europeia, nem se interessar sequer pelo assunto, como mostram, tipicamente, as baixas taxas de participação nas eleições para o Parlamento Europeu.
Todavia uma coisa sabe, de conhecimento geral: o país tem recebido importantes quantias da União Europeia, desde que aderiu às Comunidades, em 1986. As estatísticas confirmam essa percepção do cidadão comum de que o país tem beneficiado em geral com isso. A solidariedade (financeira) da União Europeia é real: por exemplo, em 2019 Portugal transferiu 1,997 mil milhões de euros para o orçamento da União Europeia. Por sua vez, do orçamento europeu, recebeu 3,885 mil milhões de euros sob a forma de fundos estruturais e de investimento. O saldo líquido favorável foi de 1,889 mil milhões de Euros.
O país é um beneficiário líquido “perpétuo” do orçamento da União Europeia e nunca esteve noutra posição desde 1986. Todavia, há um problema importante que uma estatística generalista não revela: na sociedade os ganhos são (muito) dispares com partes minoritárias da população a tirarem o grosso dos benefícios. Mas essa é outra analise que agora aqui não é efectuada.
3. Ao assistir às reacções públicas ao plano franco-alemão de um fundo de recuperação da economia europeia de 500 mil milhões de Euros — ontem ampliado, na proposta da Comissão Europeia, para 750 mil milhões de Euros —, veio-me à memória um estudo que em tempos li. Foi efectuado em 2018, antes, por isso, da actual crise provocada pela covid-19. Para além de muito interessante pelos conteúdos, tem uma enorme actualidade e relevância na compreensão do actual contexto.
O trabalho é da autoria de Philipp Genschel e Anton Hemerijck e foi efectuado no âmbito do Instituto Universitário de Florença. Intitula-se precisamente “A Solidariedade na Europa (ver Philipp Genschel e Anton Hemerijck, “Solidarity In Europe”, Policy Brief, Issue 2018/01, May 2018). Os seus autores analisaram a questão da solidariedade e das atitudes dos diferentes europeus face a esta, a Norte, a Sul e a Leste da Europa, baseados em diversos inquéritos à opinião pública. Se os autores precisassem de uma comprovação adicional da validade das suas conclusões para o caso português — o qual não foi aí especificamente abordado —, as reacções ao plano ontem apresentado pela Comissão Europeia seriam uma boa forma de validação. A questão da solidariedade tal como aí foi retratada tem claras similitudes com a percepção do assunto entre nós.
4. A solidariedade europeia tem uma “procura em alta e uma oferta escassa”. A frase, escrita com tonalidades de linguagem económica e de oferta e procura no mercado, encontra-se no referido estudo de Philipp Genschel e de Anton Hemerijck. É um bom ponto de partida para uma análise crítica do problema da solidariedade europeia, numa União Europeia muito heterogénea sobretudo desde os vários alargamentos do século XXI. Em termos conceptuais, como é explicado por Philipp Genschel e de Anton Hemerijck — os quais vou citar amplamente em seguida, embora de forma livre para tornar a exposição mais simples —, a solidariedade refere-se à expectativa de apoio mútuo entre os membros de grupos sociais (por exemplo, a nação, a classe, a família, nuclear ou alargada).
Assim, os membros do mesmo grupo devem compartilhar riscos e encargos uns dos outros para garantir os objectivos e a coesão do grupo no seu conjunto. A solidariedade fornece assim aos membros de um grupo uma espécie de seguro contra determinados riscos gravosos. Permite, desta forma, que membros individuais aceitem mais riscos e permite também que grupo, como um todo, possa atingir objectivos mais ambiciosos sob certas condições ‘contratualizadas’.
5. Mas a solidariedade tem também potenciais custos elevados. Requer que os membros do grupo transfiram parte de seus próprios recursos (materiais, financeiros, militares ou outros), para outros membros do grupo, a fim de melhorar o bem-estar ou reduzir o sofrimento de outros membros. Assim, para ser real, implica transferências de membros dos grupos em melhor situação para os menos favorecidos.
A solidariedade leva a que aqueles que enfrentam maus riscos os possam partilha com aqueles que detêm que bons riscos, que contribuintes líquidos transfiram recursos para beneficiários líquidos. Mas num contexto de solidariedade de grupo um dos problemas mais complexos é a gestão do risco moral.
Na realidade, um dos efeitos que tendem a gerar os mecanismos de solidariedade é fazer relaxar alguns membros do grupo da necessidade de se protegerem contra riscos mais gravosos. Podem induzir comportamentos negligentes ou até aproveitadores que desencadeiam riscos desnecessários, ou seja, riscos que poderiam ter sido evitados através de uma (auto)protecção apropriada.
Assim, são agravados os custos da solidariedade, matéria à qual são particularmente sensíveis, naturalmente, aqueles que se vêem, a si próprios, como ‘fornecedores’ de solidariedade, seja ela financeira ou de outro tipo. Claro que também pode ser um pretexto para os membros do grupo ‘fornecedores’ de solidariedade se furtaram às suas obrigações sob argumentos mais ou menos plausíveis, ou mesmo forçados.
6. Para o contexto actual da União, onde a relevância do estudo de Philipp Genschel e de Anton Hemerijck é maior é na demonstração de que o apoio à solidariedade europeia depende fundamentalmente de “os questionados esperarem que o seu próprio país termine na extremidade do pagamento ou do recebimento da relação de solidariedade.”
Nos países contribuintes líquidos há pouco apoio e entusiasmo face à solidariedade europeia nos cidadãos em geral; nos países beneficiários líquidos há um generalizado apoio e entusiasmo da população. Por outras palavras: “as pessoas favorecem a solidariedade se pensam que outros pagarão para a concretizar; opõem-se à solidariedade quando pensam que o seu próprio Estado terá que pagar.”
Existe, assim, em matéria de solidariedade (financeira), há muito tempo na União Europeia, uma divisão da opinião pública entre o grupo dos que se percepcionam, a si próprios, como estando no lugar dos países contribuintes líquidos (no caso estudado a Dinamarca, a Finlândia, a Alemanha, a Suécia, Reino Unido) e um outro grupo de países que se vêem, a si próprios, como beneficiários líquidos (a Grécia, Lituânia, Polónia, Espanha). O Reino Unido, como é bem conhecido, abandonou, entretanto, a União Europeia e um dos motivos principais foi mesmo esse (não querer ser contribuinte líquido).
Quanto à França e a Itália estavam, em 2018, algures no meio desses dois grupos. Mas no caso destes últimos Estados, o profundo impacto da pandemia da covid-19 na sua própria actividade económica — e da enorme dívida pública anterior, no caso da Itália — fizeram-nos pender hoje claramente para o lado da solidariedade.
7. Em termos de percepção sobre a solidariedade há entre nós um padrão em quase tudo idêntico ao dos outros beneficiários líquidos. Os 26 mil milhões de que o país poderá vir a beneficiar, a título de subvenções e/ou empréstimos (nesta altura é apenas um plano), criaram uma onda de renovado europeísmo.
Assistimos a muitas proclamações públicas de voltar a “acreditar” na Europa. É uma reacção compreensível, mas necessita também de uma autocrítica que poucos querem fazer. Uma construção europeia que ganha “cimento” à custa de transferências financeiras é (muito) frágil. Implica políticas que limitam as opções nacionais, em matéria económica e social — é a chamada condicionalidade —, o que não é um aspecto menor. Para além disso, o risco que devia ser óbvio é que quando a riqueza para redistribuir escassear se abrem brechas no que parecia sólido e adquirido. (Afinal, não existia nenhum genuíno europeísmo).
Os mais cínicos dirão que aqueles que manifestam hoje a sua fidelidade à Europa face à perspectiva de um “envelope financeiro” de 26 mil milhões de Euros são pragmáticos. Hoje estão com a União Europeia, amanhã com as potências que com ela competem e rivalizam, como a China, se as transferências financeiras e investimentos chineses superarem as da União. As “virtudes do modelo chinês”, que ignoram a democracia e os direitos humanos, serão então também muito elogiadas. Mas não é apenas um problema de nacionalismos, de populismos ou, neste último caso, mais de oportunismos. É bem mais profundo do que isso.
Há atitudes e percepções muito diferentes sobre a solidariedade nos diversos Estados da União Europeia — e que as diferentes classes políticas nacionais representam —, que é necessário perceber com se enraizaram, antes de as criticar. Não é só no Norte da Europa que há uma frequente incompreensão sobre a solidariedade europeia como é denunciado com veemência entre nós.
É verdade que aí se esquecem, por vezes demasiado facilmente, as vantagens obtidas pela participação na União, e que um contribuinte líquido também obtém ganhos importantes nas exportações e na influência política. Mas a verdade inconveniente entre nós é outra: a imagem de beneficiário líquido “perpétuo” está enraizada desde 1986 e disfarça-se de europeísmo exemplar.