Senzagiro: a Volta a Itália que só existe em ilustração é mais do que ciclismo

O Senzagiro é um Giro imaginário criado para preencher o vazio que o adiamento da prova deixou nas vidas dos fãs de ciclismo. Mas é também uma homenagem às estradas e paisagens italianas. Projecto está a angariar fundos para ajudar a cidade de Bérgamo, devastada pelo novo coronavírus.

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Ilustrações de etapas do Senzagiro Osvaldo Casanova e Tiziana Longo

A pandemia de covid-19 forçou a recalendarização das provas de ciclismo e deixou, nos meses de Primavera e Verão, um vazio para todos os fãs da modalidade. Para tentar suportar a ausência da Volta a Itália, adiada para Outubro, um grupo de amigos italianos criou o seu próprio Giro: o Senzagiro (“Sem volta”, em português), “o Giro que não é”, mas existe. Trata-se de uma Volta a Itália imaginária, criada por amantes do ciclismo e transmitida para o público através da escrita e de ilustrações. Uma viagem no tempo ao início do século XX, em que as corridas eram assim narradas todos os dias pelos jornais e revistas.

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A pandemia de covid-19 forçou a recalendarização das provas de ciclismo e deixou, nos meses de Primavera e Verão, um vazio para todos os fãs da modalidade. Para tentar suportar a ausência da Volta a Itália, adiada para Outubro, um grupo de amigos italianos criou o seu próprio Giro: o Senzagiro (“Sem volta”, em português), “o Giro que não é”, mas existe. Trata-se de uma Volta a Itália imaginária, criada por amantes do ciclismo e transmitida para o público através da escrita e de ilustrações. Uma viagem no tempo ao início do século XX, em que as corridas eram assim narradas todos os dias pelos jornais e revistas.

O conceito começou por ser pensado por Paolo Bozzuto, um investigador e professor universitário da área do urbanismo. “Tive esta ideia em Março, quando comecei a sentir que a situação não estava muito bem encaminhada por causa do vírus”, contou ao P3 o professor do Politécnico de Milão, numa conversa pelo Skype em que ainda participaram Andrea Costa, também envolvido no projecto, e o português João Soares, amigo dos dois italianos desde que frequentaram o doutoramento em Urbanismo na Universidade de Veneza.

A perspectiva de uma Primavera sem ciclismo em Itália – uma altura do ano que conta com corridas como a clássica de Milão-Sanremo ou o Tirreno-Adriático, para além do Giro – levou Paolo Bozzuto a pensar numa alternativa ao desporto que costuma “comentar todos os dias com os amigos”, numa altura de isolamento e distanciamento social em que a solidão atinge tanta gente.

“O ciclismo é uma coisa que, de certa forma, dá conforto a pessoas sozinhas em casa, especialmente os mais velhos. Há uma comunidade muito grande de fãs de ciclismo e estaríamos a perder muitas oportunidades por causa do vírus ao não fazer nada. Pensei que seria engraçado criar uma espécie de storytelling sobre um Giro que não está a acontecer, imaginário”, explicou Paolo.

Partilhou então a ideia com um grupo de amigos: Andrea Costa, o editor literário Gino Cervi, os jornalistas Filip Cauz e Guido Rubino, e ainda Silvio Martinello e Marco Pinotti, dois ex-ciclistas consagrados. A partir daqui o projecto ganhou rodas, como se estivessem a “organizar um jogo entre amigos”.

Paolo assume que o principal responsável em tornar o Senzagiro “num projecto decente” foi Gino Cervi, que conseguiu juntar uma equipa para desenvolver “textos, ilustrações, podcasts, vídeos”. Tudo sem remuneração e para ajudar a Cooperativa Social Namasté, uma associação que tem assistido quem precisa durante a crise provocada pelo novo coronavírus em Bérgamo, na região da Lombardia.

“Somos mais de 60 pessoas, de autores a ilustradores, tradutores, membros de agências de comunicação... Todos a trabalhar para a caridade”, elogiou Paolo. Os contactos do grupo permitiram que o projecto tivesse rapidamente o apoio de marcas como a Santini, uma das maiores empresas do mundo de equipamentos para ciclismo, e a Selle Italia, fabricante de selins para várias equipas do pelotão internacional. O Senzagiro tem ainda estabelecida uma parceria com o Touring Club Italiano, a maior organização italiana de turismo, que acompanha todas as etapas com guias turísticos dos locais por onde passa a caravana imaginária.

Cada uma das 21 etapas ganha vida com uma crónica e uma ilustração, todos os dias desenvolvidas por autores e ilustradores diferentes. O desfecho de cada classificativa é livre, mas sempre fiel às características do percurso e capacidades dos ciclistas que compõem o pelotão.

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Marcus Reed

“Escrevemos um guião muito básico para decidir que etapas iam ter algum acontecimento peculiar ou importante, mas tudo o resto é decidido pelo autor de cada dia. Todos os autores são especialistas em ciclismo, por isso ninguém vai imaginar um resultado estranho”, conta Paolo. O urbanista está encarregue de escrever a última etapa, mas ainda não sabe quem vai ganhar. “Ainda não a comecei a escrever”, admite.

A publicação das etapas respeita as datas iniciais previstas para a Volta a Itália: a primeira saiu a 9 de Maio e o desfecho será conhecido dia 31, domingo. Todas as crónicas estão disponíveis em italiano, inglês e espanhol, coincidindo também com as línguas faladas nas zonas de onde vem a maior parte do tráfego: Itália, Reino Unido e alguns países da América do Sul. Entre os leitores há caras conhecidas: Dario Cataldo, ciclista que ia estar a competir na Volta a Itália, contactou a equipa do Senzagiro “muito feliz” por ter sido o vencedor da sétima etapa.

Reviver a história, conhecer a geografia

Andrea Costa aguarda todos os dias, com expectativa, a publicação da crónica do dia. Apesar de ser um dos autores, o arquitecto nunca sabe o que pode acontecer, nem antes de ter escrito a sua crónica, na 15.ª etapa, nem depois. “Tive de alterar o que tinha preparado porque a escrevi sem conhecer muito bem a etapa anterior. Imaginei que ia ser uma etapa muito disputada. Isso aconteceu, mas não como pensava, por isso tive de mudar os ciclistas envolvidos”, explicou. Essa é, também, “parte da magia” do projecto.

Não basta conhecer os ciclistas para escrever uma das crónicas: é preciso saber o percurso, “estudar a geografia”, conhecer e estudar “o que aconteceu nas mesmas estradas em edições anteriores – reais – do Giro”. “O ciclismo é um desporto cheio de memória. É sempre importante recordar o que aconteceu no passado.”

A ideia de que o ciclismo pode ensinar as pessoas a reconhecer e entender o seu próprio país, uma noção que lhe foi dada por um trabalho sobre a Volta a França do filósofo francês Roland Barthes, é o ponto de partida para toda a investigação que Paolo Bozzuto realizou neste campo. Viajar pelos caminhos do Giro, as estradas que percorre, as montanhas que sobe, as localidades que visita, também é relembrar outros tempos que existem no presente. “É uma maneira extraordinária de aprender sobre o território, uma grande lição de geografia e história”, descreve Andrea.

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Ilustração da 14.ª etapa do Senzagiro Jacopo Rosati

E é aí que dois investigadores da área do urbanismo e da arquitectura podem contribuir para o fascínio evocativo das crónicas de uma Volta a Itália fantasiada: pensar no ciclismo para lá dos vencedores e derrotados, “como uma história feita na própria corrida, viajando pelo território”.

João Soares não segue ciclismo nem faz parte da equipa do Senzagiro, mas acompanha o percurso profissional de Paolo Bozzuto e Andrea Costa desde os tempos do doutoramento em Veneza, há quase 20 anos. Numa tentativa de tentar passar o trabalho dos amigos para a realidade portuguesa, João menciona o geógrafo Álvaro Domingues, que conta com vários livros publicados sobre a geografia e as representações do território português.

“Um urbanista e um arquitecto conseguem ver a paisagem de uma forma muito nítida, actualizada”, descreve João. Um urbanista consegue falar de “uma espécie de dimensão natural dos territórios e lugares por onde as bicicletas passam, mas também de uma dimensão mais antrópica”.

A ideia de João Soares é completada por Paolo Bozzuto, que descreve o ciclismo como “uma poderosíssima ferramenta metafórica”, a mais importante para fazer chegar às populações os problemas que encontra no seu trabalho. Um exemplo disso mesmo é que Paolo integra uma equipa que está a aproveitar o ciclismo na procura de soluções para a mobilidade nas cidades italianas pós-pandemia.

Por agora, o Giro fantasiado continua a viajar pelas estradas italianas do imaginário de cada autor, ilustrador e leitor do Senzagiro, para incredulidade de Paolo: “Ainda me pergunto como fomos capazes de fazer uma coisa deste tipo, porque é algo inacreditável para mim. É mágico, não consigo explicar. Há um momento na tua vida em que tens de fazer a coisa certa sem pensar em arranjar dinheiro, na tua própria carreira. E esta foi uma maneira inteligente de juntar muitos amigos, de partilhar tempo juntos, de ser feliz e, ao mesmo tempo, fazer algo realmente bom.”