A nova ditadura: o digital na educação (1.ª parte)
Quando um dia nos disserem que os alunos terão aulas com computadores e os professores são dispensáveis, então, nessa altura, será tarde – demasiado tarde – para defendermos a nossa profissão. Catastrofista? Aceito. Mas lembrem-se de Bertold Brecht.
Ao secretário de Estado,
Dr. João Costa, meu professor
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Dr. João Costa, meu professor
“Pretendo descobrir como os computadores podem mudar o que as pessoas pensam e fazem. E como esses mesmos computadores podem produzir tais alterações de forma autónoma. Quando falo de computadores, refiro-me, na verdade, a todas as experiências digitais.” Estas são palavras de B. J. Fogg, guru da internet e autor de uma tese de doutoramento, datada de 1998, sobre “os computadores carismáticos”. Aí se postulava que o modo como os computadores se dirigem aos seus utilizadores – grafismo, interfaces e linguagem – é tão importante quanto o conteúdo do que transmitem. Novamente as teses de MacLuhan: o meio é a mensagem. Todavia, depois que se soube que o próprio Facebook manipula e vigia os seus utilizadores, B. J. Fogg tornou-se mais discreto, mas nem por isso menos incisivo na demanda desse maná que pode traduzir-se em mais milhões de dólares de lucro para as empresas que, com a revolução digital, investirem naquilo que é transformação do hábito em vício.
De facto, depois de se tornar um hábito, o recurso ao digital está, paulatinamente, a transformar-se em vício e é gravíssimo que, no campo da educação, se venha defender – com argumentos falsos e falaciosos – que é precisamente o digital que pode levar os alunos a gostar da escola e do que aí se aprende. O mesmo se aplica às universidades, a breve trecho transformadas em centros de informática ao serviço do tecno-capitalismo. Se assim for, a sociedade que teremos será perigosamente formada por gente insensível, adeptas, única e simplesmente, do deus-dinheiro. O digital é a nova arma deste mundo em rede e a escola, as universidades, que deveriam ser o lugar da memória e da resistência em nome da liberdade e da paz, do pensamento e da justiça social, vão entregando o seu poder a uma lógica economicista. Quando um dia nos disserem que os alunos terão aulas com computadores e os professores são dispensáveis, então, nessa altura, será tarde – demasiado tarde – para defendermos a nossa profissão. Catastrofista? Aceito. Mas lembrem-se de Bertold Brecht.
Vale a pena informar os leitores – e quem ainda tenha esse gesto proscrito, o da leitura lenta e atenta – sobre alguns factos. O desenvolvimento das plataformas digitais no campo da educação leva a que se perca o elo da psicologia. Ou seja: o interface digital desloca, através da engenharia “made in Fogg”, a atenção do aluno do território reservado às sinapses inferenciais, em que se ancora a componente sócio-cognitiva e a empatia, para o território tríplice em que motivação, habilidade e gatilho se tornam uma e a mesma coisa. Não importa se o aluno tem competências sérias de raciocínio inferencial, se desenvolveu ao longo dos anos capacidades sociais. Saber pensar, exprimir numa linguagem clara e rigorosa o que pensa, isso não conta. É ver o modo como os adolescentes falam – revelador dos efeitos de duas décadas vividas sem livros e sem cultura letrada. O que importa na economia digital é a comparação de desempenhos segundo o critério da social competion (Leon Festinger). O vício digital associa-se, deste modo, ao medo social.
Como refere Bruno Patino em A Civilização do Peixe Vermelho – como peixes-vermelhos presos aos ecrãs dos nossos smartphones (Gradiva, outubro de 2019, 1.ª ed.): “O verdadeiro objectivo dos grandes gigantes tecnológicos é tornar as pessoas dependentes, por meio da exploração da sua vulnerabilidade psicológica.” (p.40). O medo é a base de legitimação do novo modelo educativo porque, reunindo professores e alunos em torno do digital, obrigará à permanente escravização do tempo em nome da produtividade: estar online é estar up to date, clicando a todo o instante num esforço hercúleo por não desaparecer da rede. Por não perder o emprego, em suma. Nada disto tem que ver com educação. Caem por terra os teóricos que defendem que os computadores e a rede são a saída para a crise educativa, justamente porque a crise educativa não é senão uma crise que, do ponto de vista de quem governa, só se resolve se houver políticas de redução de direitos, especialmente no que respeita à classe docente.
Se, em rede, um professor pode (mas como? Com que rigor e verdade?) “ensinar” a centenas de alunos sentados em suas casas, aprendendo (?) ‘online’, não se torna lucrativo o negócio da educação? Receio que seja esse o gato escondido: encostados à parede, vigiados por direcções coniventes com este “novo normal” (esta pandemia não é nova e o que viveremos daqui em diante não é normal – é ditatorial), um docente terá plataformas virtuais para chegar a dezenas e dezenas de turmas. Gradualmente, as infraestruturas escolares fecharão. E os professores? Substituídos por gestores, ou tutores informáticos que, nada querendo saber de scientia, serão exemplares funcionários do admirável mundo novo. Mais barato, claro.