Pela integração na carreira de investigação científica, já!
Ao contrário de outras áreas da administração pública, na ciência muitos dos diretamente envolvidos na resposta à covid 19, da qual todos dependemos, são trabalhadores precários.
Passados dois meses da primeira declaração do estado de emergência em resposta à propagação da covid-19 no território português, e entrando numa fase de progressivo regresso a uma “normalidade” parcial, os impactos da pandemia na sociedade, na economia, mas também na investigação científica, já se fazem sentir. Em relação a esta última, assistimos a uma crescente expectativa social face à ciência, vista como a principal solução para a crise pandémica: encontrando uma vacina, melhorando as terapêuticas, ajudando a resolver as questões económicas, propondo soluções para os problemas sociais e psicológicos ou estudando os instrumentos para voltar à “normalidade”.
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Passados dois meses da primeira declaração do estado de emergência em resposta à propagação da covid-19 no território português, e entrando numa fase de progressivo regresso a uma “normalidade” parcial, os impactos da pandemia na sociedade, na economia, mas também na investigação científica, já se fazem sentir. Em relação a esta última, assistimos a uma crescente expectativa social face à ciência, vista como a principal solução para a crise pandémica: encontrando uma vacina, melhorando as terapêuticas, ajudando a resolver as questões económicas, propondo soluções para os problemas sociais e psicológicos ou estudando os instrumentos para voltar à “normalidade”.
Nós, os trabalhadores e as trabalhadoras científicas de diferentes áreas, assumimos o desafio e, apesar de grandes dificuldades, estamos a reorganizar o nosso trabalho para contribuir para as respostas que a sociedade nos pede. Porém, o Governo e as universidades continuam sem reconhecer que as nossas dificuldades resultam, antes de mais, de escolhas políticas anteriores, de décadas, que resultaram na enorme precariedade atual do trabalho científico. Basta referir que, ao contrário de outras áreas da administração pública, na ciência muitos dos diretamente envolvidos na resposta à covid-19, da qual todos dependemos, são trabalhadores precários.
Nas últimas três décadas, a expansão da investigação científica em Portugal foi conseguida através do abandono da carreira científica e sua substituição por uma sequência de vínculos precários, que resultam em enormes disfuncionalidades para a ciência realizada e em repetidas situações de desemprego para os doutorados e outros trabalhadores científicos, a maioria das vezes sem acesso ao subsídio de desemprego e em que apenas a emigração, o abandono da profissão em que se investiu por décadas ou o recurso a ajudas familiares permitem “aguentar”. Agora mesmo, muitos investigadores científicos passam por estas dificuldades.
Além disto, o único programa que, em 30 anos, podia ter significado a estabilização dos trabalhadores e trabalhadoras da ciência, o PREVPAP [Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários na Administração Pública], foi sabotado pela tutela, pelas universidades, pelas suas instituições de ensino superior e pelas associações de direito privado a estas ligadas que permitiram ‘esconder’ o trabalho precário e fingir que este não exercia funções na, e para, a universidade. Resultou num fracasso histórico com taxas de aprovação inferiores a 10% (onde outros sectores tiveram 50-60%), excluindo investigadoras e investigadores com dezenas de anos de trabalho excelente e necessário à sociedade. Além de assente em declarações equívocas dos dirigentes e insultuosas para os investigadores, o processo contribuiu para agravar a tensão entre colegas – entre os que nas últimas três décadas tiveram oportunidade de desenvolver uma carreira estável e progressiva e os outros, sempre precários.
Nos últimos cinco anos, temos continuadamente alertado para esta situação, mas sem consequências práticas por parte dos decisores. Está na hora de valorizar o trabalho científico, sem retóricas nem propaganda, mas com ações sérias e consequentes.
As soluções, conhecidas do Governo e das instituições de ensino superior, são afinal simples:
- A carreira científica deve ser a normalidade do trabalho científico e as posições temporárias apenas devem existir enquanto formas de acesso à carreira. Por outras palavras, todas as posições pós-doutorais devem ter um percurso de estabilização claramente definido, com objetivos, moldes de avaliação e consequências pré-definidas;
- Não podem existir carreiras paralelas, tal como presentemente existem com as diversas modalidades de bolsa, os contratos a termo no âmbito da Lei 57/2017 ou de contratos do Concurso Estímulo ao Emprego Científico (CEEC) fora da carreira de investigação científica. A carreira é só uma, e todas as posições devem prever a integração nela, refletindo o Estatuto da Carreira de Investigação Científica (Decreto-lei 124/99).
- Nenhum trabalhador ou trabalhadora deverá poder ser contratado com uma bolsa. As bolsas devem ser limitadas a estudantes que se encontrem em formação científica e que pretendam obter um grau académico;
- As instituições devem assumir a responsabilidade pelos/as seus/suas trabalhadores e trabalhadoras. Deve haver um limite ao número de vínculos precários, sempre inferior ao do pessoal de carreira; as instituições que não integrem os seus contratados a termo (por exemplo, CEEC, Investigadores FCT, Lei 57/2017 e outros) nos quadros de investigação e/ou docência não deverão ser elegíveis para futuros financiamentos para tais concursos nem para projetos; e as instituições privadas sem fins lucrativos paralelas às universidades devem ser ou extintas ou apenas terem financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), caso tenham um quadro de trabalhadores e dirigente em exclusividade de funções;
- A gestão das unidades de investigação e de ensino deve ser democrática. Deve haver plena paridade de representação e poder de decisão de todos os investigadores e funcionários nos órgãos das instituições;
- O sistema de financiamento deve ser credível. Para tal, o financiamento programático deve ser previsível e estável; a informação sobre o financiamento clara; a avaliação rigorosa e transparente e os seus critérios definidos previamente. A FCT, como principal instituição financiadora, deve cumprir os prazos estabelecidos por lei (note-se, por exemplo, como em Maio de 2020 ainda não há resultados definitivos ou contratos para o concurso CEEC 2018).
- O sistema de concursos deve ser mais diverso e flexível, por exemplo contemplando, à imagem de outros sistemas europeus, concursos para pequenas verbas (por exemplo, entre 1000 e 20.000 euros), que complementem e operacionalizem a investigação realizada em posições de carreira, em vez do atual modelo único com projetos até 200 ou 250 mil euros, onde a maior parte das verbas é normalmente utilizada para recursos humanos descartados no final. Ter uma maioria de posições laborais permanentes não obsta a que exista uma forte mobilidade geográfica e interinstitucional, como se constata em diversos sistemas científicos europeus.
- E finalmente, impõe-se uma discussão séria sobre a reorganização do atual sistema científico e tecnológico, o estatuto de carreira de investigação científica e o papel a desempenhar pelas múltiplas instituições. É impreterível que os investigadores/as científicos/as participem de modo efectivo nessa discussão e no delinear das reformas necessárias a um sistema esgotado. No limite, face à reiterada recusa das instituições de ensino superior em integrar investigadores e investigadoras, e embora não sejam caminhos consensuais, devem ser seriamente contempladas soluções como a criação de um quadro de investigadores e investigadoras adstrito à própria FCT (que existe em diversos sistemas europeus, muito diferentes entre si) ou a autonomização legal e financeira dos centros de investigação (que passariam a ter quadro próprio de trabalhadores) em relação às instituições universitárias que presentemente os acolhem e que tudo fazem para manter a investigação e os seus trabalhadores como atividade subalterna, mesmo quando se denominam de universidades de investigação.
O nosso desafio ao Governo é que finalmente inicie a resolução destes problemas estruturais para a ciência que se faz em Portugal. Não se trata simplesmente de investir mais. Trata-se de investir melhor e com sustentabilidade, para assegurar a qualidade da ciência e a estabilidade dos seus trabalhadores e trabalhadoras. As épocas de crise também servem para mudar, para algo mais justo.
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico
Alexandra Baixinho, Alice Ramos, Ana Horta, Ana Nunes de Almeida, Ana Sofia Ganho, André Carmo, Annarita Gori, Cristiane Bastos, Chiara Pussetti, Daniel Melo, Davide Masoero, Diana Vieira, Edalina Sanches, Eduardo Ascensão, Eunice Seixas, Filipa Vala, Filipa Vicente, Francisco Curado, Hugo Pinto, Idalina Sarsinha, Iolanda Évora, Irene Peano, Isabel Correa da Silva, Isabel do Rosário, João de Carvalho, Lorena Querol, Maria Lobo Antunes, Maria Piçarra, Marta Rosales, Patricia Matos, Paula Sequeiros, Raquel Rego, Rita Cachado, Roberto Falanga, Simone Frangella, Simone Tulumello, Sónia Alves, Teresa Martinho, Vanessa Cunha, Vasco Ramos, Virgínia Calado/Rede de Investigadores contra a Precariedade Científica