Manuel Heitor e o numerus clausus em Medicina
Estando as escolas médicas estatais a ensinar um número de estudantes muito acima das suas possibilidades, exauridas como algumas reconhecem, não se entende este anúncio do sr. ministro, sobretudo porque conhece bem os obstáculos colocados à abertura dos novos cursos de medicina.
Recentemente, o sr. ministro Manuel Heitor, numa entrevista ao semanário Expresso, anunciou um aumento do numerus clausus em algumas Escolas Médicas, de 15% relativamente ao atual.
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Recentemente, o sr. ministro Manuel Heitor, numa entrevista ao semanário Expresso, anunciou um aumento do numerus clausus em algumas Escolas Médicas, de 15% relativamente ao atual.
No momento em que todos reconhecem que o SNS apresentou uma resiliência notável no combate à covid-19, e em que as Faculdades de Medicina se encontram completamente bloqueadas para o ensino clínico – devido à infeção há hospitais escolares que impedem a entrada nas instalações a estudantes, mesmo aqueles que dentro de um ou dois anos serão médicos –, é estranho este anúncio, tanto mais que não se sabe ainda se haverá uma nova vaga da pandemia, o que continuaria a impedir o ensino clínico prático.
As Escolas Médicas há muito tempo que andam a afirmar que o número de estudantes é muito elevado, reclamando mesmo a redução do numerus clausus e das outras formas excecionais de entrada. E se durante alguns anos se compreendeu o esforço despendido para formar um elevado número de médicos, de forma a compensar os que se reformaram – situação entretanto ultrapassada –, o facto é que o atual elevado número de estudantes tem vindo a provocar uma progressiva degradação na formação médica, claramente notória quanto à humanização e comunicação com os doentes, em particular com os que necessitam de mais atenção e compreensão.
Ética, empatia e compaixão não se ensinam com modelos, simuladores ou mesmo atores, como alguns pretendem, mas com o exemplo quotidiano de profissionais, face ao doente fragilizado ou em sofrimento.
De salientar que nesta situação de pandemia, todos os relatos sobre a atuação dos médicos referem que tudo correu de forma exemplar.
Na verdade, onde mais se notou a falta de médicos neste período conturbado não foi no SNS, mas nos Hospitais Privados – alguns praticamente suspenderam a atividade. De facto, a maioria dos clínicos, apercebendo-se da gravidade da pandemia que o país e o mundo atravessavam, suspenderam a sua atividade clínica privada.
Ricardo Jorge, médico tão citado ultimamente e que na sua época propôs à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, onde foi professor, uma reforma do ensino médico, tem gravado no seu epitáfio: nihil nissi amor (nada se faz sem amor). Porém, ensinar em más condições, com turmas enormes de estudantes à volta do doente, não será certamente a forma ideal para motivar docentes e estudantes. E, para ensinar medicina, também é preciso paixão.
Há pouco tempo, o reitor da Universidade do Porto, o sr. prof Sousa Pereira, durante anos diretor de uma Escola Médica, sintetizou de forma muito clara a questão fundamental do ensino médico: “com a qualidade temos que ser intransigentes.” Ora, a qualidade do ensino médico no atual contexto começa a ser seriamente questionada, entre outras razões, devido ao elevado número de estudantes.
Sabendo-se que há dois projetos bem estruturados para ensino médico não estatal, o da Cespu (Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário) e o da Universidade Católica, seria a meu ver mais sensato acabar com preconceitos e autorizar a abertura dos referidos cursos, em alternativa ao anunciado aumento do numerus clausus, agora proposto.
Vejamos, a título de exemplo, o projeto da Cespu, o que melhor conheço.
É subscrito por uma cooperativa que desde há 38 anos se dedica, em exclusivo, ao ensino das Ciências e Tecnologias da Saúde, altura em que implementou o primeiro curso de Medicina Dentária, não estatal.
Estudam no campus da Gandra, em Paredes, um número aproximado de 3000 jovens, dos quais 52% são estudantes internacionais, a maioria provenientes da União Europeia (93%). Frequentam cursos de medicina dentária, ciências farmacêuticas, psicologia, enfermagem, ciências biomédicas, imagem médica e radioterapia, podologia, osteopatia e ciências forenses, distribuídos por um programa doutoral, dez mestrados (dos quais três integrados), quatro licenciaturas, seis cursos conferentes de especialidades profissionais e ainda quarenta e seis pós-graduações. Recentemente obteve autorização para iniciar o mestrado em Medicina Veterinária, sendo que todas as formações atrás referidas foram aprovadas, ou pela agência A3ES ou pelas respetivas Ordens e Associações Profissionais, registando milhares de licenciados a trabalhar em instituições publicas e privadas, nacionais e estrangeiras.
Recentemente, em Inglaterra, foi eleita a melhor enfermeira do ano (The Good Nurse) uma licenciada na Cespu, o que indicia que a formação nesta escola cooperativa vai muito para além do ensino das unidades curriculares convencionais.
Há anos que tem em funcionamento a licenciatura em Ciências Biomédicas, correspondente aos três primeiros anos do Mestrado Integrado em Medicina (preparação bietápica). E, desde 2012, um protocolo com a Universidade Alfonso X permite a estes licenciados inscreverem-se diretamente no quarto ano letivo do MIM, ultrapassando assim o impedimento de concluírem o mestrado na Cespu, tornando-se médicos em Madrid. Alguns desses estudantes integraram já os 400 médicos de universidades europeias que em 2019 concluíram o MIM e que, juntamente com os estudantes das universidades portuguesas, foram avaliados no último concurso, para iniciar a especialidade.
O projeto apresentado conta com um plano curricular bem estruturado e com um grupo docente com grande experiência pedagógica e clínica para o implementar, tendo sido assegurada a participação de vários hospitais e centros de saúde. Além disso, a Cespu tem obtido, desde há vários anos, boas classificações, nomeadamente em termos científicos, no insuspeito ranking internacional das escolas de ensino superior, o Scopus/Scimago, colocando-a à frente de universidades públicas nacionais.
Estando as escolas médicas estatais a ensinar um número de estudantes muito acima das suas possibilidades, exauridas como algumas reconhecem, não se entende este anúncio do sr. ministro, sobretudo porque conhece bem os obstáculos colocados à abertura dos novos cursos de medicina.
Ora, o aumento do numerus clausus no sector público, sem o anúncio simultâneo da aprovação dos projetos submetidos, paradoxalmente, mais não é que uma forma de caucionar uma das áreas corporativas a que o sr. ministro se refere na entrevista, e o reforço do monopólio na formação médica – único no ensino –, inaceitável num Portugal democrático, europeu e moderno.
Termino questionando o sr. ministro, com uma pergunta formulada recentemente pelo sr. reitor da UP: "Porque razão então não se coloca esta questão em relação a outras profissões, como a dos arquitetos?”
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico