Teletrabalho: perversão de oportunidades?
Do teletrabalho como um complemento desejável precipita-se para a sua proposta inquietante como alternativa.
Uma das consequências mais notórias da pandemia foi o desenvolvimento do teletrabalho. Sendo esporádico, tornou-se recurso; oferece-se agora como complemento e anuncia-se como alternativa, em alguns sectores. Revelar-se-á como flexibilização do trabalho ou como controlo do trabalhador? É o seu estatuto moral que está em jogo.
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Uma das consequências mais notórias da pandemia foi o desenvolvimento do teletrabalho. Sendo esporádico, tornou-se recurso; oferece-se agora como complemento e anuncia-se como alternativa, em alguns sectores. Revelar-se-á como flexibilização do trabalho ou como controlo do trabalhador? É o seu estatuto moral que está em jogo.
O teletrabalho em tempo de confinamento foi um alívio para empregadores e uma alegria para empregados. Para além das motivações particulares de cada um – preservar a actividade profissional e estar ocupado –, houve um sentimento de que se estava a contribuir para alguma serenidade e bem-estar social. Foi com espírito de missão que muitos contornaram as dificuldades de um regime que se impôs abruptamente como única via de trabalho, sem adaptações prévias ou formações específicas. Sobrepôs-se família e trabalho, converteu-se a casa em escritório, esbateram-se horários. No caso paradigmático dos professores, exigiu-se que dispusessem, do seu apertado bolso, de todos os meios necessários para o trabalho remoto: computador, câmara, internet, sempre com qualidade suficiente para manter as aulas Zoom. Tudo foi aceite. Era uma situação temporária, de recurso.
Entretanto, o teletrabalho foi granjeando entusiastas na percepção de que pode ser assumido como uma modalidade de actividade complementar, introduzindo uma ambicionada flexibilidade a servir os interesses das partes, num ajustamento às necessidades circunstanciais de ambos. Importará, então, proceder a adaptações ponderadas nos meios a dispor, nas metodologias a implementar e na gestão do tempo a promover.
Mas há já também quem perspective o teletrabalho como um regime alternativo. Esta semana, a Universidade de Cambridge, no Reino Unido, foi a primeira a anunciar, o que várias ponderam, a transferência de todos os seus cursos “face-a-face” para online. Em Portugal são os próprios alunos que o vêm sugerindo na expectativa de reduzir as propinas. Cambridge explicita não haver qualquer redução nas propinas estabelecidas e – acrescento eu – se houvesse seria um desastroso negócio muito se perdendo, em vivacidade do debate intelectual e interacção social, por pouco, na duvidosa comodidade de ficar em casa. As aulas Zoom tendem à reprodução de um modelo expositivo que se julgava ultrapassado e cujo anacronismo surge agora legitimado pelo revestimento das novas tecnologias. Incentivar-se-á assim também experiências em curso de substituição dos professores por assistentes digitais (inteligência artificial), mais sábios, incansáveis e económicos. Do teletrabalho como um complemento desejável precipita-se para a sua proposta inquietante como alternativa.
Afinal, no sector do ensino, como em outros, o teletrabalho possibilitará uma significativa redução de custos de operação, ao empregador, podendo estabelecer um novo quadro nas contratualizações laborais. Os empregados, porém, receiam a substituição do trabalho regular por um trabalho à peça, trocando-se a flexibilização necessária por uma precariedade crónica.
E desenganem-se os que fantasiam com a conquista de uma auto-gestão no teletrabalho, libertadora do olhar das chefias. A monitorização do trabalho há muito se vem intensificando e ameaça tornar-se cada vez mais invasiva atrofiando a esfera privada de cada um. Em 2015, uma empresa de consultadoria britânica estimava que 30% das grandes empresas monitorizassem todas as actividades dos seus empregados, um valor que se previa alcançasse os 80% em 2020. Para tal basta ter o computador do empregado ligado ao servidor da instituição empregadora, em qualquer contexto, físico ou remoto. Esta monitorização é justificada por se enquadrar no local (físico) ou no tempo (remoto) de trabalho e exerce-se intensivamente através da análise dos textos de emails, mensagens nas redes sociais, ficheiros armazenados no computador; escrutinando a navegação na Internet (e quanto tempo passa em cada site), o uso de aplicações do computador, ou mesmo encontros físicos; percepcionando como o empregado utiliza o terminal de trabalho, o tempo despendido em cada tarefa (e mesmo a velocidade de digitalização) e, consequentemente, o nível de produtividade, rastreando também a sua localização; registando ainda dados biométricos.
A urgente regulamentação do teletrabalho deve contemplar a sua dimensão moral, enquanto modalidade de realização pessoal e de exercício de responsabilidade social, colhendo a oportunidade de flexibilização e anulando cenários tão reais quanto perversos.