Lições da História
Ao longo da história, neutralizar e manipular tribunais e outras instituições independentes foi sempre um passo essencial da estratégia dos líderes autocráticos para consolidar o poder.
Este ano honramos mais uma vez a memória de Giovanni Falcone, o juiz italiano assassinado pela máfia em 23 de maio de 1992, assinalando esta data como o Dia de Alerta para a Independência da Justiça.
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Este ano honramos mais uma vez a memória de Giovanni Falcone, o juiz italiano assassinado pela máfia em 23 de maio de 1992, assinalando esta data como o Dia de Alerta para a Independência da Justiça.
Todos os meses de maio, as comemorações da vitória na Europa e da derrota do regime totalitário nazi são acompanhadas de declarações sobre a importância da memória e de tirar lições da História, para que possamos evitar que os mesmos erros se repitam.
Numa conferência organizada pela MEDEL (Magistrats Européens pour la Démocratie et les Libertés) em Sofia, Bulgária, em novembro de 2018, o Prof. Hans Petter Graver, da Universidade de Olso, salientando a importância de um poder judicial independente, lembrou-nos como a estratégia para estabelecer um regime autoritário na Noruega pelos ocupantes nazis teve um dos seus importantes episódios no conflito com o Supremo Tribunal norueguês em 1940.
O episódio está descrito em International Law in Historical Perspective (Vol. IX - Part IX-A – the Laws of War), do Dr. H.J.W. Verzijl (Sijthoff & Noordhoff, 1978). O Reichskommissar nomeado por Hitler para a Noruega, Josef Terboven, começou por emitir um primeiro decreto em outubro de 1940, estatuindo que todos os funcionários públicos que não cumprissem a política da administração ocupante seriam demitidos. Pouco tempo depois, em 14 de novembro de 1940, outro decreto deu ao Kommissar‑ministro da Justiça plenos poderes para nomear e demitir juízes de qualquer tribunal, contradizendo frontalmente a lei dos tribunais então em vigor. Os juízes do Supremo Tribunal da Noruega protestaram numa carta escrita dirigida ao Kommissar‑ministro da Justiça, dizendo que o decreto era ilegal e que, por isso, deveria ser revogado. O Kommissar‑ministro da Justiça não respondeu e, em vez disso, emitiu outro decreto, reduzindo a idade obrigatória de reforma dos funcionários públicos (aí se incluindo juízes) de 70 para 65 anos, reservando-se para si próprio o poder de decidir quais os que poderiam permanecer no cargo depois dessa idade. O Reichskommissar, por seu turno, respondeu aos juízes do Supremo Tribunal: disse-lhes que o Supremo Tribunal ou qualquer outro tribunal norueguês não tinham competência para questionar a validade de quaisquer decretos emitidos por ele ou qualquer outro ministro Kommissar. Os juízes do Supremo Tribunal declararam unanimemente a ilegalidade de tal entendimento, afirmando que a Constituição norueguesa lhes atribuía a competência para aferir da validade das leis e decretos administrativos e o dever de verificar a sua compatibilidade com o direito internacional. A situação terminou com a demissão coletiva de todos os juízes do Supremo Tribunal. Um novo tribunal foi criado pela administração nazi, composto exclusivamente por juízes pro‑nazis, que em 10 de fevereiro de 1941 decidiu que os decretos do Reichskommissar e dos seus Kommissar‑ministros eram válidos, assim legitimando o entendimento do ocupante.
Numa altura em que por toda a Europa se sucedem os ataques contra a independência do Poder Judicial, episódios como este devem ser constantemente lembrados, para evitar que se repitam. Ao longo da história, neutralizar e manipular tribunais e outras instituições independentes foi sempre um passo essencial da estratégia dos líderes autocráticos para consolidar o poder.
Que nunca o esqueçamos – devemo‑lo à memória de Giovanni Falcone e de todos aqueles que se sacrificaram em nome da Justiça.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico