As falsas alegações de violação também existem
Os abusos e violações acontecem, as mais das vezes, entre quatro paredes, sem testemunhas, fotografias ou vídeos que os atestem, pelo que a condenação basear-se-á, inevitavelmente, apenas no depoimento da vítima. Nestes casos, como é evidente, exige-se do julgador um especial dever de cuidado e ponderação. Afinal, as denúncias falsas também existem.
As falsas denúncias de crimes de violação e abuso sexual existem e levaram já à condenação e encarceramento de inocentes. É esta constatação óbvia, de todos conhecida, que parece às vezes ausente de algumas polémicas públicas.
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As falsas denúncias de crimes de violação e abuso sexual existem e levaram já à condenação e encarceramento de inocentes. É esta constatação óbvia, de todos conhecida, que parece às vezes ausente de algumas polémicas públicas.
Vem isto a propósito de uma notícia do PÚBLICO que relata a absolvição pelo Tribunal da Relação de Évora de um homem que havia sido previamente condenado a uma pena de oito anos e meio de prisão, pelo Tribunal de Setúbal, por violação da filha, à data com cerca de 12 anos de idade. Alega-se que o depoimento da vítima foi “validado” por uma perícia efetuada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) e pelos esclarecimentos desse mesmo perito em julgamento.
Fazer justiça, porém, não é tarefa do INMLCF. As perícias – médicas ou de qualquer outro tipo – são coadjuvantes do trabalho judicial, é certo. Mas é ao tribunal que cabe avaliar o conjunto de provas produzidas, incluindo as periciais, e chegar à verdade. Ou, pelo menos, à verdade judicial, à verdade possível, já que, tratando-se de tarefa humana, conhece limites.
A “validação” do INMLCF de que se fala trata-se de uma perícia psicológica, complementada com a prestação de esclarecimentos em tribunal do perito que a realizou, onde terá este concluído que, provavelmente, “a menor não deve ter imaginado a história”.
Ora, a perícia psicológica a uma criança, e presumindo que é realizada de acordo com as orientações técnicas e científicas recomendadas, implica avaliar a sua capacidade para testemunhar em Tribunal. Trata-se de apurar se a criança compreende a natureza do processo judicial e consegue depor de forma relevante, bem como se evidencia capacidade para distinguir a realidade da fantasia e a verdade da mentira. Pressupõe também a ausência de doença mental, perturbações emocionais graves ou perturbações cognitivas. A perícia permite ainda recolher o relato da criança que deverá ser, posteriormente, alvo de uma análise qualitativa, no sentido de se perceber se reúne, ou não, critérios que se correlacionem com um aumento de credibilidade.
Assim, uma perícia psicológica não permite avaliar a veracidade ou falsidade de um relato, mas sim a probabilidade de este corresponder a uma situação vivenciada, e não a uma mentira, uma fantasia ou a um sugestionamento por parte de terceiros. O terreno é de hipóteses, portanto, e não de certezas, sendo que os peritos não têm bola de cristal.
É forçoso que não se imponha no foro judicial, como defende o acórdão do Tribunal da Relação, uma espécie de “presunção de verdade” relativamente a qualquer denúncia de crime sexual, o que levaria a erigir o depoimento da vítima a princípio e fim da condenação criminal, à luz da qual apenas seriam valorados os elementos probatórios que corroborassem a tese da vítima, e descartados todos os demais.
Se existem muitas e muitas vítimas cujos relatos foram ignorados, silenciados e até ridicularizados, causando tremendo sofrimento e dor a quem teve a coragem de falar, a verdade é que também existem falsas alegações. O fenómeno é particularmente evidente em contexto de conflito parental, na maior parte das vezes por sugestionamento de um progenitor da criança alegadamente abusada. E estas situações também causaram vítimas. Muitas crianças ficaram privadas do convívio com um dos pais. E muitos pais foram injustamente ostracizados, vendo as suas vidas destroçadas, quantas vezes irremediavelmente. Algumas destas relações parentais não puderam jamais ser recuperadas. São os chamados órfãos de pais vivos.
Os relatos das vítimas de crime sexual são, obviamente, uma peça importante ou mesmo decisiva na construção judicial. Os abusos e violações acontecem, as mais das vezes, entre quatro paredes, sem testemunhas, fotografias ou vídeos que os atestem, pelo que a condenação basear-se-á, inevitavelmente, apenas no depoimento da vítima. Nestes casos, como é evidente, exige-se do julgador um especial dever de cuidado e ponderação. Afinal, as denúncias falsas também existem.