A Bela e o Monstro
Ao reduzir as emissões poluentes e o risco de contágio na atual pandemia, a bicicleta apresenta-se como uma espécie de panaceia para boa parte dos problemas dos tempos modernos, redescoberta por muitos e muitas depois de semanas de clausura forçada.
Se, nas cidades, o atípico contexto das últimas semanas tapou os sorrisos com máscaras, também se tornou evidente que inspirou mais pessoas a usarem a bicicleta para se deslocarem. E ainda bem. Ver ciclistas nas ruas de Lisboa é como ver golfinhos no Tejo, um poético indicador de bom ambiente, mas também de esperança num futuro melhor.
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Se, nas cidades, o atípico contexto das últimas semanas tapou os sorrisos com máscaras, também se tornou evidente que inspirou mais pessoas a usarem a bicicleta para se deslocarem. E ainda bem. Ver ciclistas nas ruas de Lisboa é como ver golfinhos no Tejo, um poético indicador de bom ambiente, mas também de esperança num futuro melhor.
As significativas vantagens da bicicleta como meio de transporte vêem-se exacerbadas numa situação onde a preocupação com a saúde de todos e de cada um é primordial. Para a maioria dos percursos urbanos quotidianos, o velocípede é imbatível: não só é rápido e mais económico que as alternativas motorizadas, mas ainda fortalece o corpo e a alma. Ao reduzir as emissões poluentes e o risco de contágio na atual pandemia, apresenta-se como uma espécie de panaceia para boa parte dos problemas dos tempos modernos, redescoberta por muitos e muitas que, depois de semanas de clausura forçada, tomaram uma decisão que até foi mais fácil de concretizar do que inicialmente pensariam. Para as empresas e trabalhadores, o modo ciclável fomenta menor absentismo laboral por doença, mas também reduz os recursos despendidos no tráfego rodoviário. O pequeno comércio de proximidade agradece e, em especial porque Portugal possui uma forte fileira industrial do setor, a balança comercial também. Com um ritmo inédito nas últimas décadas, o país está a enfrentar a crise a pedalar.
O clima ajuda, assim como as redes de ciclovias que se têm transformado em enormes ginásios a céu aberto, mas mais ainda a proliferação das bicicletas com assistência elétrica, que alargam significativamente o âmbito de utilização a todo o país, e praticamente a toda a população. Nos próximos meses de Verão, dadas as limitações atuais que o surto covid-19 impõe, assistiremos seguramente a um incremento do turismo interno, em zonas do interior e de baixa densidade, com maior recurso à bicicleta em contexto de recreio, seja para passeios em família ou para travessias de maior fôlego. Será uma oportunidade – improvável até há alguns meses – de conhecer um Portugal diferente, e que é já um destino internacional de excelência para o turismo com bicicleta, mais conhecido lá fora que por cá, e ainda com significativas perspetivas de crescimento nos próximos anos, de forma bem sustentável para os territórios.
Importa agora compreender como é que, num quadro tão favorável para impulsionar de forma decisiva a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável (ENMAC) – aprovada há um ano! –, o Estado irá incentivar e orientar uma dinâmica que, ao contrário do nosso país, noutras paragens está a ser ativamente promovida no contexto do surto pandémico. Os exemplos multiplicam-se, por parte de governos centrais e cidades que “desconfinam” por esse mundo fora. Ao nível interno, entidades como a FPC, a ABIMOTA, a MUBi ou a Estrada Viva, entre outras, têm exigido – e proposto – medidas concretas e decisivas para fomentar a prática com bicicleta e sustentar uma mudança efetiva no padrão de mobilidade, e em tempo útil. É, portanto, fundamental concretizar a visão estratégica da ENMAC, e no que garantirá de extraordinários ganhos para a saúde, para a economia e para o ambiente. Com tanto que há por fazer, o único passo em falso será continuar a marcar passo.
Em muitos casos, nem é preciso investir mais que vontade política. É urgente, p.ex., eliminar aberrações regulamentares como a atual limitação de transporte de bicicletas nos transportes públicos, sempre que logisticamente possível. O Metro de Lisboa, p.ex., impõe um limite de duas bicicletas por carruagem (um pai com duas pequenas crianças com bicicleta está de facto impedido de circular). Por outro lado, e apesar da enorme quantidade de agentes policiais nas ruas, a fiscalização continua a não mitigar suficientemente comportamentos que ameaçam o conforto e a segurança de ciclistas: a velocidade excessiva, desrespeito pela sinalização e distância mínima de ultrapassagem, ou o estacionamento em segunda fila com automóvel contribuem para ampliar o risco rodoviário, condicionando a generalização do modo ciclável, que deve ser especialmente promovido no atual contexto. A transformação do Fundo de Garantia Automóvel em Fundo de Garantia Rodoviário, permitindo alargar a sua cobertura no âmbito da responsabilidade civil aos velocípedes – como sucede p.ex. na Suíça –, seria mais um instrumento de pacificação entre os vários utilizadores das estradas e ruas. Num momento como o atual, construir a mudança com todos tornará tudo mais fácil. Como pedalar com o vento pelas costas.
O monstro que enfrentamos não é apenas o vírus, que está a começar a despoletar alterações profundas na perceção do modelo de desenvolvimento possível para o planeta e para as cidades, mas o eco desfasado de um coro decadente que continua preso a soluções impraticáveis – e indesejáveis para uma cada vez maior fatia da sociedade – assentes em lógicas ultrapassadas de mais alcatrão e petróleo. Já há sessenta anos atrás, Guy Debord afirmava ser “necessário substituir a viagem como complemento do trabalho pela viagem como prazer”. Estamos, evidentemente, atrasados. Mas mais vale tarde…
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico