O vírus legislativo
Por estes dias, repito à saciedade a clientes que, infelizmente, o que é hoje verdade, pode amanhã ser mentira, que não basta aguardar pelo Diário da República, é preciso estar atento às FAQ’s da Segurança Social e aos inusitados esclarecimentos feitos através dos mais diversos canais. Vale tudo. Na verdade, uma das nossas principais funções como advogados deixou pura e simplesmente de poder ser cumprida.
Há dias, num webinar (sinais dos tempos…) dedicado ao Direito do Trabalho, um dos oradores apresentou a sua exposição unicamente formulando perguntas, todas elas resultantes de dúvidas interpretativas em diplomas já aprovados sobre possíveis soluções legais que o legislador deixou em aberto, umas vezes talvez por esquecimento, outras sem dúvida por má técnica legislativa.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Há dias, num webinar (sinais dos tempos…) dedicado ao Direito do Trabalho, um dos oradores apresentou a sua exposição unicamente formulando perguntas, todas elas resultantes de dúvidas interpretativas em diplomas já aprovados sobre possíveis soluções legais que o legislador deixou em aberto, umas vezes talvez por esquecimento, outras sem dúvida por má técnica legislativa.
Como tantos outros profissionais nas respectivas áreas de actuação, tenho tido, como advogado, a (infeliz) oportunidade de ser actor num tempo que ninguém adivinhava possível: ver literalmente de um dia para o outro empresas a fechar, sectores inteiros a parar, milhares e milhares de trabalhadores a ficarem temporariamente (?) sem trabalho, muitos deles a terem de ficar em casa com os filhos em idade escolar (como se isso fosse compaginável com o trabalho!), uma sociedade inteira confrontada com uma travagem gigantesca e abrupta de que resultou uma inesgotável fonte de problemas e de questões para resolver. E estar agora a assistir à dita retoma, que, nas circunstâncias em que acontece, é tão ou mais difícil do que a paragem forçada que tivemos de fazer. Na qualidade em que diariamente actuo, nunca até hoje tinha vivido experiência sequer parecida, ao ter de responder de forma instantânea às mais diversas questões, dúvidas e anseios de clientes que, compreensivelmente, se viraram para os advogados na tentativa, infelizmente tantas vezes vã, de obterem esclarecimentos que lhes servissem de farol numa noite de breu caída de repente.
Não sendo propósito deste texto sublimar o papel dos advogados, também não é o de lhes retirar a merecida importância, sobretudo quando os escolhos que se lhes deparam para cumprirem adequadamente a sua função social são enormes e a tornam tantas vezes inútil. Mas antes importa referir um ponto prévio: como já ouvi de tanta gente, também eu nutro respeito pelos políticos que se viram confrontados com o que é a pior crise social e económica das nossas vidas. Nesse sentido, tenho compreensão pelo que se faz menos bem quer em termos de opções políticas, quer em termos de técnica legislativa. No entanto, essa boa vontade tem limites, sob pena de se confundir com laxismo e complacência.
Vem isto a propósito de ser por estes dias difícil, mesmo muito difícil, atingir o desejável grau de segurança na interpretação e aplicação do acervo normativo publicado pelo Governo, sendo que, por ser a que melhor conheço, apenas me refiro à legislação laboral e de segurança social. Todos sabemos que o Direito não é uma ciência exacta e que uma mesma lei dá azo a interpretações diversas. Mas não é disso que se trata. Do que se trata é de normas que são publicadas e sofrem importantes emendas passados poucos dias, lacunas tremendas que deixam por resolver problemas práticos críticos que a aplicação dos diplomas vieram criar, absoluta e total confusão na hierarquia das fontes, revogações tácitas que passam despercebidas, preponderância de orientações provenientes dos serviços administrativos sem que as mesmas estejam vertidas em lei, esclarecimentos televisivos ou nas redes sociais por parte de membros do Governo sobre aplicação e interpretação da lei, pluralidade simultânea de fontes de informação muitas vezes díspares (ex. Segurança Social e DGERT) e, finalmente, o que talvez constitua a maior novidade destes tempos, a eleição das FAQ’s (Frequent Asked Questions) como fonte primeira e mais importante de todo este edifício normativo (?). Assumo, aliás, que, como certamente muitos outros colegas de profissão, oriento-me preferencialmente pelas respostas às FAQ’s em detrimento das normas legais que os mesmos interpretam, já que serão os serviços a tramitar os pedidos dos meus clientes, o que demonstra bem como andam as coisas.
Ora, ignorando as piadas jurídicas que sobre isto já se fazem (como a que ouvi há dias dizendo que a famosa pirâmide de Kelsen sobre a hierarquia das fontes de Direito tinha sido, também ela, achatada à semelhança da curva da covid-19), a questão é grave e é grave porque coloca irremediavelmente em causa, simultaneamente, o papel dos advogados, os direitos dos agentes económicos e a segurança do tráfego jurídico. Efectivamente, do mesmo passo que o Governo afirma, e bem, querer proteger empresas e empregos, cria um tal emaranhado de leis, decretos-leis, portarias, regulamentos, resoluções, despachos e… FAQ’s que torna a interpretação e aplicação das normas extraordinariamente difícil, quando não mesmo impossível. Para além da burocracia, que continua omnipresente.
A falta de cuidado em criar um sistema uno e coerente tem, todavia, um efeito pernicioso, qual seja o de fazer com que os agentes económicos, amedrontados pela incerteza, optem por medidas egoísticas de protecção, em vez de lutarem pela preservação dos postos de trabalho. Evidentemente, quando um agente económico não consegue, com suficiente segurança, planear o futuro próximo com base no quadro legal existente (repare-se que não estou a referir-me ao quadro económico, que é por natureza incerto), tende a tomar medidas defensivas e protectoras do seu próprio negócio. E que medidas são essas? A destruição, sem pejo, de postos de trabalho na medida do indispensável para proteger a empresa. E bem pode o Governo vir dizer que estão proibidos os despedimentos colectivos e por extinção dos postos de trabalho durante o lay-off e nos dois meses seguintes e atribuir poderes (de constitucionalidade mais que duvidosa) à ACT para impedir cessações de contratos de trabalho sempre que os mesmos lhe pareçam ilegais. Aposto o que for preciso que qualquer empresário tudo fará para proteger a viabilidade da sua empresa, mesmo que isso signifique uma litigância que demorará anos a ser resolvida, quando a crise não passar de uma lembrança de má memória.
Dou um exemplo para a falta de cuidado acima referida. A ideia do Governo ao ter facilitado o acesso ao lay-off – que é, tradicionalmente, um processo burocrático e algo demorado – foi meritória e encontra plena justificação na premência em dotar as empresas de meios expeditos de resolução dos seus problemas (motivados pela paragem da economia), tentando ao mesmo tempo salvaguardar os postos de trabalho, com isso protegendo o emprego e as condições socioprofissionais dos trabalhadores e das respectivas famílias. Porém, o que no início parecia fácil e razoavelmente claro tem-se tornado cada vez mais difícil e opaco. De facto, perante as inúmeras questões que a aplicação de tal regime tem suscitado, o Governo, por meio dos serviços interpretativos da Segurança Social, tem vindo a restringir a aplicabilidade da medida, fazendo exigências quanto às condições de recurso que não existiam no início.
Um exemplo? Uma empresa que tenha recorrido ao lay-off por ter sido obrigada a parar tem agora, para renovar o pedido por mais um mês, de retomar obrigatoriamente a actividade no prazo de oito dias após ter cessado o impedimento, mesmo que essa retoma seja fictícia (por manifesta ausência de mercado, o que acontecerá num número significativo de situações). Colocada a questão perante a Segurança Social, que veio esta explicitar? Que basta que a empresa chame de volta um (repito: um único) trabalhador para que fique comprovada a dita retoma. Mas há mais: enquanto a lei aprovada e em vigor apenas exige a retoma da actividade no referido prazo como condição para a atribuição dos apoios (quem quiser que leia o n.º 1 do artigo 25.º-C do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio), a Segurança Social veio aditar (!) nas FAQ’s como condição adicional a certificação por contabilista certificado da situação de paragem da actividade da empresa ou queda abrupta da facturação. Terá isso sido pensado pelo legislador? Não sabemos. Foi vertido em lei? Não. Era expectável que constituísse condição necessária de prorrogação do apoio? Parece-me pacífico que não, visto que não consta de qualquer diploma. Passou a ser obrigatório? Pelos vistos, sim. Tal conclusão é pacífica? Diria que à luz da lei não, mas à luz do entendimento do aplicador (i.e. serviços da Segurança Social) sim. Em que ficamos? Não sei, mas à cautela, tenho dito que é melhor cumprir as FAQ’s, não vá o diabo tecê-las.
Conclui-se assim que os milhares de empresas que recorreram ao lay-off com fundamento no encerramento compulsivo ficaram a saber pelas FAQ’s da Segurança Social publicadas no passado dia 18 de Maio que, afinal, há mais algumas exigências para poderem manter os apoios para além daquilo com que, legitimamente, contavam. Uma vez mais, acreditando na seriedade do Governo, consigo, embora não sem bastante esforço, entender a obrigação de retomar a actividade (numa lógica de evitar que empresas menos sérias possam viver à custa do erário público quando tal já não se justifica), mas mudar as regras a meio do jogo, inclinando o tabuleiro de maneira a que o que era razoavelmente imediato se tenha tornado muito mais difícil de alcançar, ainda por cima com efeitos nefastos para todos, parece-me, mais do que descuido, verdadeiramente atentatório do princípio da boa-fé e, francamente, pouco inteligente para preservar o essencial – empresas viáveis, postos de trabalho, poder de compra dos cidadãos e das famílias, estabilidade social e familiar, etc.
Outro exemplo? Os formulários da Segurança Social, que se tornaram indispensáveis para solicitar os apoios. Ao contrário do que deveria suceder, os mesmos não constam de portaria do Governo, antes sendo construídos e publicados, sem qualquer previsibilidade nem publicidade, pela Segurança Social. Primeira questão que se coloca: não existe uma fonte oficial que contenha os ditos formulários (i.e. o Diário da República), o que coloca todos os interessados numa situação de permanente sobressalto e insegurança quanto à entrada em vigor dos mesmos. Segunda questão: não é sequer respeitado o princípio básico de os mesmos serem divulgados simultaneamente à entrada em vigor das medidas a que reportam, com isso gerando uma confusão absoluta de aplicação de regimes (é por estes dias frequente a pergunta “já saiu o formulário?...”). Exemplo: a prorrogação do pedido de lay-off supõe a existência de um formulário próprio que, todavia (à data em que escrevo), ainda não foi disponibilizado pela Segurança Social, não obstante terem já existido milhares de pedidos de prorrogação, naturalmente submetidos sem o dito formulário. Qual a solução que lhes será dada a final? Talvez venha nas FAQ’s…
Por estes dias, repito à saciedade a clientes que, infelizmente, o que é hoje verdade, pode amanhã ser mentira, que não basta aguardar pelo Diário da República, é preciso estar atento às FAQ’s e aos inusitados esclarecimentos feitos através dos mais diversos canais. Vale tudo. Na verdade, uma das nossas principais funções como advogados – a de transmitir uma interpretação da lei tão sólida e fundamentada quanto possível – deixou pura e simplesmente de poder ser cumprida, não só em prejuízo próprio, mas sobretudo em prejuízo de todos os que necessitam de tomar decisões que têm evidente impacto nas vidas de muita gente.
Ouvir, como eu ouvi, o ministro da Economia, advogado que conhece bem a dinâmica empresarial, apresentar no início da crise diversos pacotes de medidas com a intenção de dar às empresas e aos trabalhadores os meios legais necessários para combaterem juntos o que estamos a viver e o que aí vem, deu-me esperança de que, desta vez, essas medidas iriam ao encontro das necessidades e serviriam para resolver problemas concretos tendo como principal fim a preservação de empresas e de empregos. Desgraçadamente, passados dois meses, vejo que isso não só não aconteceu, como, nas mãos dos tecnocratas dos nossos serviços públicos (aquilo a que um dia ouvi chamar de “tecnoestrutura”), tudo se tem transformado num enorme pesadelo processual, burocrático e jurídico. Porque, no fim, estamos sempre a falar do mesmo – vidas de pessoas –, é com enorme tristeza que vejo o que acredito terem inicialmente sido boas intenções do Governo esfumar-se por entre uma enorme falta de senso e a inevitável e, pelos vistos, imbatível atracção pela burocracia.