Vencer o medo e mudar
O vírus SARS-CoV-2 conseguiu colocar a saúde em todas as políticas e criar oportunidade para mudanças até hoje impossíveis de concretizar. Vencer o medo, recuperar a confiança e liderar em contexto de incerteza são os requisitos.
A resposta à pandemia foi organizada com base em conhecimento e executada com proporcionalidade e transparência. SNS e forças de segurança lideraram em contexto de incerteza. Portugal tomou medidas a tempo, a população aderiu, os bons resultados estão à vista: achatamento da curva epidemiológica, limites da medicina intensiva nunca atingidos, mortalidade inferior à verificada em muitos países europeus.
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A resposta à pandemia foi organizada com base em conhecimento e executada com proporcionalidade e transparência. SNS e forças de segurança lideraram em contexto de incerteza. Portugal tomou medidas a tempo, a população aderiu, os bons resultados estão à vista: achatamento da curva epidemiológica, limites da medicina intensiva nunca atingidos, mortalidade inferior à verificada em muitos países europeus.
As notícias que anunciaram o caos no SNS eram fake news. O SNS suportou o embate, respondeu com prontidão e eficácia. Promover a integração de cuidados, acelerar processos de digitalização, não ostracizar os sectores privado e social, prosseguir o rumo de aumento do financiamento público são medidas consensuais para o futuro. Mas o momento merece que se regresse à diferença, exigente e reformadora. Para lá desse mainstream, a primeira prioridade deve ser reforçar serviços e unidades de saúde pública. Esta é a melhor forma de agradecer o muito trabalho realizado pelos profissionais nestes meses de pandemia. A escassez de cabeças e braços dos profissionais de saúde pública, não importáveis nem sequer da China, não foi problema apenas graças ao tremendo esforço, dedicação e capacidade de desdobramento dessas mulheres e homens. A medida é urgente, pelo risco de segunda vaga, importante, porque indispensável para uma resposta eficaz, e custo-efetiva por ter um custo muito baixo, sobretudo se comparado com os custos de alternativas baseadas em tecnologia.
A promiscuidade gerada pelo pluriemprego é um problema grave que subsiste há décadas, agravado hoje por ser fator de risco acrescido de propagação da doença. Que uma orientação ministerial a todos os dirigentes do SNS para que não autorizar a acumulação de funções, por razões de saúde pública, passe a ser a norma – é possível e oportuno. Aceitar as inevitáveis excepções, exigindo justificação e transparência, amaciará a execução; excluir de financiamento público, SIGIC e convenções as entidades que insistam em manter profissionais em acumulação garantirá o cumprimento da norma.
A urgência hospitalar é vítima de má organização e dos efeitos perversos dos baixos salários, entendida como posta-restante de todo o sistema de saúde. Em tempo de pandemia, os cidadãos evitaram a ida directa à urgência, por boas e más razões. Prolongar esse comportamento em tempos de normalidade, reforçando a linha SNS 24 e os CODU com centenas de profissionais, é uma oportunidade para melhorar todo o sistema, com um custo adicional nas linhas de apoio bem inferior à poupança obtida com a minimização das falsas urgências. Tornar o acesso à urgência obrigatoriamente dependente de referência após contacto telefónico é importante e custo-efectivo, mas só possível se a decisão for rápida, pois a chave do sucesso é evitar o regresso ao velho normal.
Foi evidente nesta pandemia a forma cruel como (não) cuidamos dos mais velhos. Não se pode repetir a atitude de descartar a responsabilidade para o departamento do lado, a solução é certamente multifatorial e complexa, mas, na componente saúde, exigir uma direcção técnica de enfermagem com responsabilidade obrigatória e dedicada parece ser uma medida importante e custo-efectiva. Os enfermeiros são os profissionais de saúde mais bem habilitados para cuidar dos mais velhos.
O vírus SARS-CoV-2 conseguiu colocar a saúde em todas as políticas e criar oportunidade para mudanças até hoje impossíveis de concretizar. Vencer o medo, recuperar a confiança e liderar em contexto de incerteza são os requisitos. A pandemia provoca novas desigualdades e acentua as pré-existentes, o que é inaceitável para um governo de matriz socialista.
Uma nota final de preocupação para o futuro do SNS é a não anunciada, mas quase certa, saída de Mário Centeno de ministro das Finanças. Ao seu trabalho nos últimos cinco anos se deve a voz portuguesa respeitada nas discussões europeias e a confiança dos odiados mercados, materializada nas taxas de juro historicamente baixas. O tão reclamado aumento do financiamento público da Saúde só será possível se esses mercados disponibilizarem os recursos financeiros necessários. Pela minha parte, o meu agradecimento público a Mário Centeno por ter criado as condições orçamentais para que hoje seja possível desenvolver e fortalecer o SNS.