Frederico Pedreira: um escuro tão minuciosamente iluminado

Romance-deformação. A ficção como pesquisa de materiais autobiográficos, inevitavelmente alterados pelas vagas de uma recriação efabulada.

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Hugo Pinto Santos O livro de Frederico Pedreira é um acto de coragem: romancear uma autobiografia, tornar autobiográfico um romance RUI GAUDÊNCIO

Uma das primeiras coisas que se podem avançar acerca do livro de Frederico Pedreira é que este constitui um acto de coragem. Não é negligenciável a deformação que consiste em romancear uma autobiografia, ou tornar eminentemente autobiográfico um romance. Especialmente se o foco se encontra na infância. Porque nenhum dos géneros sai incólume dessa fusão. Paralelamente a esse facto, a narrativa centra-se na infância, e não, por hipótese, na adolescência, ou nesse dúbio capítulo da vida a que se chama, por vezes, o do “jovem adulto”. Quando essas fases da vida surgem, é por contraponto ou antecipação, em certos flashes narrativos de A Lição, como esse em que se alude ao Lido e a Veneza, que se ligam a esse majestoso livro de poesia do autor, Presa Comum (Relógio D’Água, 2015). De resto, poderíamos recuar, ainda, a um livro anterior de Pedreira, Um Bárbaro em Casa (Língua Morta, 2014), para entrevermos já esse cruzamento de registos, a deliberada mestiçagem dos géneros (entre o diário e o conto, ou a novela), noutro notável livro de F.P. Por outro lado, não seria inverosímil conceber em A Lição de Sonâmbulo uma espécie de prequela da idade adulta, sombria e magestaticamente plasmada em Um Bárbaro. Mas, em A Lição, seria muito mais fácil cair nas armadilhas dos sentimentos mais baratos. O autor não caiu. Ou muito raramente “tropeçou de ternura”. Estudar a infância, ou fazer resumos sobre a matéria, é, obviamente, perigoso em termos literários. Se essa infância é protegida, aparentemente isenta de tensões, perigos, ou acontecimentos, as dificuldades avolumam-se, porque passam a faltar esses desafios e obstáculos, que intensificaram a tensão narrativa. Por conseguinte, não foi a nenhum desses ingredientes que Frederico Pereira pôde recorrer. O manejo da linguagem é uma das formas que este livro tem de se salvar de uma placidez insuportável — “ficava a trabalhar na minha imaginação como plantas exóticas cheias de ângulos proibidos” (p.62); “a febre subsidiava-me os sonhos numa nuvem lenta e fumegante que se adensava junto ao radiador o quarto” (p.122). Sem essa destreza, o que impediria o amolecimento de tudo, em redor de um sujeito que se expõe a rememorar (ou ficcionar essa rememoração, a certa altura, será indiferente) o que há de mais frágil em cada qual? Por acção dos excessos sentimentais, que se poderiam instalar, ou do relaxamento formal, que se poderia estender a todo o livro.

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Uma das primeiras coisas que se podem avançar acerca do livro de Frederico Pedreira é que este constitui um acto de coragem. Não é negligenciável a deformação que consiste em romancear uma autobiografia, ou tornar eminentemente autobiográfico um romance. Especialmente se o foco se encontra na infância. Porque nenhum dos géneros sai incólume dessa fusão. Paralelamente a esse facto, a narrativa centra-se na infância, e não, por hipótese, na adolescência, ou nesse dúbio capítulo da vida a que se chama, por vezes, o do “jovem adulto”. Quando essas fases da vida surgem, é por contraponto ou antecipação, em certos flashes narrativos de A Lição, como esse em que se alude ao Lido e a Veneza, que se ligam a esse majestoso livro de poesia do autor, Presa Comum (Relógio D’Água, 2015). De resto, poderíamos recuar, ainda, a um livro anterior de Pedreira, Um Bárbaro em Casa (Língua Morta, 2014), para entrevermos já esse cruzamento de registos, a deliberada mestiçagem dos géneros (entre o diário e o conto, ou a novela), noutro notável livro de F.P. Por outro lado, não seria inverosímil conceber em A Lição de Sonâmbulo uma espécie de prequela da idade adulta, sombria e magestaticamente plasmada em Um Bárbaro. Mas, em A Lição, seria muito mais fácil cair nas armadilhas dos sentimentos mais baratos. O autor não caiu. Ou muito raramente “tropeçou de ternura”. Estudar a infância, ou fazer resumos sobre a matéria, é, obviamente, perigoso em termos literários. Se essa infância é protegida, aparentemente isenta de tensões, perigos, ou acontecimentos, as dificuldades avolumam-se, porque passam a faltar esses desafios e obstáculos, que intensificaram a tensão narrativa. Por conseguinte, não foi a nenhum desses ingredientes que Frederico Pereira pôde recorrer. O manejo da linguagem é uma das formas que este livro tem de se salvar de uma placidez insuportável — “ficava a trabalhar na minha imaginação como plantas exóticas cheias de ângulos proibidos” (p.62); “a febre subsidiava-me os sonhos numa nuvem lenta e fumegante que se adensava junto ao radiador o quarto” (p.122). Sem essa destreza, o que impediria o amolecimento de tudo, em redor de um sujeito que se expõe a rememorar (ou ficcionar essa rememoração, a certa altura, será indiferente) o que há de mais frágil em cada qual? Por acção dos excessos sentimentais, que se poderiam instalar, ou do relaxamento formal, que se poderia estender a todo o livro.