Vem aí uma avalanche de processos judiciais de família!
A necessária ponderação entre garantias processuais, por um lado, e celeridade do sistema, por outro, não poderá fazer-se sempre à custa desta última. À Justiça cabe a delicada missão de manutenção da paz social, o que não sucederá se pequenos litígios de âmbito familiar desencadeados pela pandemia permanecerem anos em tribunal.
Esta terrível pandemia deixará para trás um rasto de famílias destroçadas.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Esta terrível pandemia deixará para trás um rasto de famílias destroçadas.
Destroçadas pela tremenda crise económica cuja extensão e repercussões ainda não conseguimos sequer antecipar, mas destroçadas também ao nível emocional e relacional.
Nós, advogados de família, bem sabemos que o número de divórcios é sempre maior em Setembro e Outubro, após as férias de Verão, e também em Janeiro, na sequência das festas de Natal e fim de ano. Dizem os psicólogos que estes períodos de convívio mais intenso põem a nu as fragilidades da relação conjugal e justificam o acréscimo de separações.
O que será de esperar agora, após semanas e semanas de confinamento em casa, muitas vezes tendo que conjugar teletrabalho com tarefas domésticas e o cuidado das crianças?
Divórcios e separações trazem também, em tantas situações, litígios relativos aos filhos. Muitos destes conflitos parentais acabarão, já o sabemos, em tribunal. O mesmo destino terão as queixas daqueles pais e mães separados ou divorciados que, durante o confinamento, ficaram privados do convívio com os filhos a propósito – ou a pretexto – da pandemia.
A crise económica justifica, por sua vez, toda uma série de novos processos referentes a pensões de alimentos: muitas não foram pagas ou foram-no apenas em parte; outras terão de ser ajustadas à realidade daqueles que perderam o seu emprego ou o seu negócio; noutros casos haverá que fixar pensões de alimentos em situações onde até aqui elas não eram necessárias.
Todos estes novos processos irão somar-se às dezenas de milhar de outros já em curso, e que estão a sofrer tremendos atrasos com a paralisação praticamente total do sistema de justiça a que assistimos desde meados de Março e a que já nos referimos noutro artigo.
Esperamos, pois, um aumento brutal do número das pendências nos tribunais de família.
Ora, antevendo-se um possível cenário de rutura na jurisdição de família e menores – e porventura noutras, como a jurisdição laboral –, quais as concretas medidas postas em prática pelo Ministério da Justiça para atalhar este problema? Como se recuperarão os atrasos e se fará Justiça em tempo útil?
A resposta a esta questão é a tradicional entre nós: nenhuma… na data em que escrevo, não é conhecida uma única medida destinada a obviar ao inevitável estrangulamento do sistema. Reina o proverbial imobilismo e aversão à inovação e mudança que caracteriza o nosso sistema de Justiça.
Aqui ao lado, em Espanha, foi já publicado o Real Decreto-Ley 16/2020, de 28 de abril, que em matéria de família e menores prevê a vigência de um procedimento judicial muito simplificado, com redução ao mínimo de formalidades para os litígios mais comuns. O julgamento, a que as partes deverão logo comparecer munidas das provas, realiza-se nos dez dias seguintes à entrada da petição em tribunal, sendo depois proferida a sentença no prazo de três dias úteis. Aplicar-se-á aos litígios resultantes do incumprimento de regimes de visitas e em matéria pensões de alimentos. Trata-se de uma tramitação simples, adequada a litígios de complexidade diminuta como o são grande parte dos originados pela pandemia. A aplicação deste regime é temporária e vigorará apenas até ao final do terceiro mês seguinte ao decretamento do fim do estado de alarme.
A solução castelhana afigura-se ágil e equilibrada e poderá aliviar significativamente o número de processos pendentes em tribunal. Por outro lado, os problemas que afligem os nossos vizinhos ibéricos são também, afinal, aqueles com que nos defrontamos em Portugal. O mesmo é dizer que faria sentido equacionar a adoção por cá de uma solução idêntica destinada a solucionar litígios de complexidade reduzida.
É certo que, dos sectores mais conservadores da Justiça, logo surgiriam vozes clamando que o procedimento abreviado espanhol não oferece garantias processuais bastantes. Mas, pergunto, de que servirão tais garantias a quem, recorrendo agora ao tribunal, só poderá esperar obter uma sentença dentro de um ou dois anos?
A necessária ponderação entre garantias processuais, por um lado, e celeridade do sistema, por outro, não poderá fazer-se sempre à custa desta última. À Justiça cabe a delicada missão de manutenção da paz social, o que não sucederá se pequenos litígios de âmbito familiar desencadeados pela pandemia permanecerem anos em tribunal. Não serve o cidadão e descredibiliza o sistema.