Ubuntu: para aprender a viver juntos
O único caminho para a paz é termos menos “outros” e mais “nós”. Precisamos de reafirmar que somos uma só raça, uma mesma família, um só destino: juntos nos afundaremos ou juntos nos salvaremos.
Celebra-se hoje mais um Dia Internacional “Viver juntos em paz”, uma iniciativa das Nações Unidas através da qual se procura “mobilizar os esforços da comunidade internacional para promover a paz, a tolerância, a inclusão, a compreensão e a solidariedade”. Em tempo de covid-19, comemorar este dia tem particular significado.
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Celebra-se hoje mais um Dia Internacional “Viver juntos em paz”, uma iniciativa das Nações Unidas através da qual se procura “mobilizar os esforços da comunidade internacional para promover a paz, a tolerância, a inclusão, a compreensão e a solidariedade”. Em tempo de covid-19, comemorar este dia tem particular significado.
A “era do risco”, a par com a incerteza, a insegurança e a desconfiança, foi-se adensando e hoje vivemos reféns de sucessivos ciclos de medo, ora da “invasão de estrangeiros”, ora do terrorismo, ora agora da “pandemia”. De ciclo em ciclo, numa sucessão cada vez mais rápida, há um eixo comum nestes processos de amedrontamento: a “outrificação”, enquanto criação artificial de um “outro” que representa uma ameaça. Em cada crise, este movimento tenebroso vai-se diversificando nos alvos e é acompanhado por uma reação de hostilidade que facilmente se transforma em agressão irracional. A atualização da dinâmica de “bode expiatório” continua tragicamente presente no nosso quotidiano. Buscam-se culpados pela pandemia, nos chineses que “libertaram” o vírus ou nos que vieram “de fora” do nosso sítio e o trouxeram. Ouvimo-lo nas nossas ruas, nas nossas cidades. Foi sempre assim e tende a ser pior, porque o medo domina-nos cada vez mais, porque os perigos são à escala global e não param de nos surpreender e – infelizmente – porque não nos cansamos de repetir os erros do passado.
Que narrativas para enfrentar estes processos de desumanização, devastadores nas suas consequências?
Das raízes ancestrais da África subsaariana podemos recuperar o conceito Ubuntu, que significa “eu só posso ser pessoa através das outras pessoas” e inspirou Mandela e Tutu na sua extraordinária peregrinação em busca de uma “nação arco-íris”, na qual todos pudessem viver juntos, sem diferença de dignidade, nem de direitos, nem de oportunidades. Esta ética social que a Academia de Lideres Ubuntu recuperou e hoje celebra com o seu primeiro “Ubuntu Leaders World E-Summit” contrapõe a um egoísmo perigoso e suicida, a afirmação corajosa de uma interdependência radical e afirma uma nova ética do cuidado face ao perigoso vírus da indiferença.
Aprender a viver juntos, como caminho para a paz, será sempre concretizado através de um processo de reconhecimento e cuidado mútuo, de apreço pela diversidade cultural, étnica e religiosa e de crescimento com ela e através dela. Viver juntos exige um exercício contínuo de construção de pontes e, por mais difícil que seja, vale a pena regressar ao otimismo de Edgar Cardoso: “Em todo o rio há sempre um lugar onde se pode construir uma ponte; há que encontrá-lo.”
O caminho não será fácil. As dinâmicas dos vários populismos são fogo em seara seca. Explorando ressentimentos e preconceitos, parece imparável o discurso de nacionalismos loucos, de localismos irracionais e de “justicialismos” básicos. Sobem-se muros, levantam-se fronteiras, queimam-se pontes e vende-se a ilusão de que assim estaremos seguros.
Mas é mentira.
O único caminho para a paz é termos menos “outros” e mais “nós”. Precisamos de ser capazes de alargar o perímetro de um “nós” plural, nunca esquecendo que somos todos “braços da mesma árvore”. Precisamos de reafirmar que somos uma só raça, uma mesma família, um só destino: juntos nos afundaremos ou juntos nos salvaremos. “Estamos todos no mesmo barco”, recordava-nos há dias Francisco.
Vale a pena recuperar aqui a sabedoria de Margaret Mead quando identificava num antigo fémur, com marcas de uma fratura cicatrizada, o primeiro sinal de civilização. Explicava que no reino animal, se se partir a perna, a morte é certa. Nenhum animal sobrevive, em ambiente selvagem, o tempo suficiente para que um osso fraturado possa sarar. Não se poderia fugir do perigo, ir beber água, ou caçar. Um fémur com uma marca de consolidação pós-fratura é sinal que alguém cuidou daquela pessoa até que ela recuperasse. E aí, diz Mead, começou a civilização.
Esta encruzilhada será particularmente evidente nas etapas futuras da crise da pandemia que vivemos. Precisamos de saber escolher a única via que oferece futuro. Hoje, a verdadeira civilização nascerá de sabermos viver juntos em paz, cuidando e servindo.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico