Os vinhos da minha vida

Não sou de coleccionar rótulos. Esqueço facilmente o nome do vinho e o ano de colheita. O que valorizo é a lembrança dos momentos marcantes, a emoção que certo vinho me proporcionou, pela sua singularidade ou apenas pela companhia ou pelo lugar.

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jmf jose maria ferreira

Já tive a sorte e o prazer de beber vinhos extraordinários, alguns dos quais nunca poderia comprar, pela sua raridade e preço elevado. Já bebi alguns Madeira do século XVIII e vinhos do Porto do século XIX. Numa certa noite até partilhei duas garrafas do lendário Porto Vintage Noval Nacional 1963 com um grupo de sommeliers europeus famosos (cada garrafa custava cerca de 5600 euros). Não posso queixar-me. Ainda mantenho cobiça por inúmeros vinhos, sobretudo certos brancos e tintos da Borgonha, a minha perdição. Mas o que já bebi faz de mim um privilegiado.

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Já tive a sorte e o prazer de beber vinhos extraordinários, alguns dos quais nunca poderia comprar, pela sua raridade e preço elevado. Já bebi alguns Madeira do século XVIII e vinhos do Porto do século XIX. Numa certa noite até partilhei duas garrafas do lendário Porto Vintage Noval Nacional 1963 com um grupo de sommeliers europeus famosos (cada garrafa custava cerca de 5600 euros). Não posso queixar-me. Ainda mantenho cobiça por inúmeros vinhos, sobretudo certos brancos e tintos da Borgonha, a minha perdição. Mas o que já bebi faz de mim um privilegiado.

Não sou de coleccionar rótulos. Esqueço facilmente o nome do vinho e o ano de colheita. O que valorizo é a lembrança dos momentos marcantes, a emoção que certo vinho me proporcionou, pela sua singularidade ou apenas pela companhia ou pelo lugar. Lembro-me de quase ter ido às lágrimas com o Nun Vinya dels Taus 2010, um Xarel-lo de uma vinha velha minúscula da região catalã de Penedés, num jantar memorável no restaurante Can Roca, em Girona. Também nunca irei esquecer a magnum de Barca Velha 2000 que bebi nos meus 50 anos, com a família e alguns amigos, entre os quais o próprio “criador” do vinho, Luís Sottomayor, que nasceu no mesmo dia e no mesmo ano que eu. Ou os singelos mas emocionantes vinhos “passados” do Pico que comprei ao garrafão a produtores da Criação Velha. Ou o fantástico Sauvignon Blanc que bebi o ano passado em WaterKloof, na região do Cabo, África do Sul, numa vinha linda de morrer, situada entre o mar e a montanha.

Poderia falar com saudade dos muitos vinhos que bebi na companhia de amigos e conhecidos em almoços e viagens inesquecíveis, como os que partilhei com o saudoso David Lopes Ramos ou os que vou bebendo com os amigos mais chegados de hoje. Ou como aquele Chardonnay que bebi em Colónia de Sacramento, no Uruguai, na companhia do crítico João Paulo Martins. O vinho devia ser um Chardonnay uruguaio de esplanada, barato e sem nome conhecido, mas, bebido naquele lugar, acabados de chegar de Buenos Aires, soube-me pela vida.

Não teria espaço para enumerar os momentos felizes que já vivi na companhia de uma garrafa de vinho. Mas há um que não gostaria de deixar para trás. Foi em 2002, numa viagem a São Tomé, a minha estreia em África. Gostei tanto de São Tomé que nunca mais quis lá voltar, para não me desiludir.

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"Não posso queixar-me. Ainda mantenho cobiça por inúmeros vinhos, sobretudo certos brancos e tintos da Borgonha, a minha perdição. Mas o que já bebi faz de mim um privilegiado."

Fui em representação da Fugas numa missão todo-o-terreno que, para além da entrega de material escolar, tinha o propósito de tentar contornar toda a ilha, algo nunca conseguido, devido à impenetrável vegetação da húmida montanha são-tomense. O sonho terminou ao fim de oito quilómetros. Mas os dias passados na ilha foram de puro encantamento. Pela emocionante simpatia e generosidade das crianças, pela vegetação, pelas praias, pelas roças. Por tudo, na verdade. Até deu para entrevistar o major Cobó, que semanas antes tinha liderado um golpe de estado falhado e que passara a ser adjunto do Ministério da Defesa!

A viagem terminou com um jantar oferecido pelo governo são-tomense na Casa Grande da roça Rio do Ouro, a maior e mais imponente da ilha e na altura sob exploração estatal. Os “donos” da casa Grande eram agora os descendentes dos anteriores escravos. Mas à porta, à espera das sobras, continuava a haver negros da sanzala, escravos modernos. Havia algo de perturbador e contraditório naquele ambiente.

Eu tinha levado uma garrafa de Madeira, julgo que um Malvasia da Blandy's. A dada altura, mandei às malvas o jantar pomposo. Sentei-me à varanda da Casa Grande e, iluminado pelas estrelas que faiscavam sobre a roça, abri a garrafa de Madeira e bebi-a com alguns são-tomenses da sanzala. A olhar para o céu estrelado. Agora que recordo esse momento, penso que teria sido em jeito de agradecimento.

Pedro Garcias é produtor de vinhos e jornalista, escrevendo no PÚBLICO desde a sua fundação, em 1990. Foi editor da Fugas de 2003 a 2008, suplemento no qual escreve agora sobre vinhos.