Testes serológicos: a balança entre o risco e o benefício
Em geral, a utilização de testes serológicos em populações com baixa taxa de infeção esperada pode ser indesejável: empresas ou autarquias que realizem estes testes podem ficar com a ideia de que há mais casos de pessoas que já contactaram com o vírus do que a realidade.
Nas últimas semanas tem havido um crescente interesse na realização de testes serológicos para estimar a proporção de pessoas que contactaram com o SARS-CoV-2 sem o saberem. Estes testes fazem parte da primeira linha da luta contra a covid-19, mas a sua utilização deve ser criteriosa. A aplicação de testes serológicos numa população com previsivelmente poucas pessoas que já foram infetadas irá produzir resultados a que chamamos falsos positivos.
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Nas últimas semanas tem havido um crescente interesse na realização de testes serológicos para estimar a proporção de pessoas que contactaram com o SARS-CoV-2 sem o saberem. Estes testes fazem parte da primeira linha da luta contra a covid-19, mas a sua utilização deve ser criteriosa. A aplicação de testes serológicos numa população com previsivelmente poucas pessoas que já foram infetadas irá produzir resultados a que chamamos falsos positivos.
Esta é uma questão muito bem conhecida na aplicação de testes de rastreio. E é um assunto em que a ciência colide com o senso comum: pensamos que podemos confiar num teste com uma especificidade de 99%, isto é, em 100 testes a pessoas negativas, um caso é um falso positivo que nunca foi infetado. Infelizmente, um teste desses utilizado numa população com poucos casos de infeção será muito pouco confiável. Isto porque nestas circunstâncias espera-se que a maioria dos casos positivos seja falsos positivos.
É mais fácil de compreender este aparente paradoxo com um exemplo. Foi anunciado que se realizaram cerca de 1300 testes numa região do Algarve, que resultaram em cerca de 30 casos positivos. Foi noticiado que, apesar de esta região ter apenas 0,2% de casos de covid-19 diagnosticados, cerca de 2% da população já tinha sido infetada. Será que esta conclusão é válida? Vejamos.
Se um teste tem uma especificidade de 98%-99%, isto significa que se tivessem sido testadas as mesmas 1300 pessoas o ano passado, antes da pandemia, quando todos seriam negativos, ainda assim 1% a 2% dos testes seriam positivos (falsos positivos). Isto é, entre 13 e 26 pessoas teriam testes positivos sem nunca terem sido infetadas. O valor que foi obtido é próximo do valor esperado de falsos positivos – logo é possível que muitas dessas pessoas nunca tenham sido de facto infetadas. Estes resultados podem ser contraproducentes ao dar uma sensação de segurança (imunidade), que não é real.
Contudo, o mesmo teste pode ser muito útil se utilizado numa população onde se espera uma alta taxa de exposição ao vírus – por exemplo, entre profissionais de saúde. Nessas circunstâncias, o número de testes positivos será muito superior ao valor esperado de falsos positivos, e nesta população a maior parte destes casos serão verdadeiros positivos. Deste modo, o teste poderá ajudar a mostrar quem são os indivíduos que já estiveram infetados mesmo não tendo tido qualquer sintoma.
Com efeito, a utilidade dos resultados do teste não depende apenas da sensibilidade e especificidade (nem da proporção de falsos positivos e falsos negativos), mas também do seu valor preditivo. Este valor preditivo depende da frequência de casos na população em estudo. Por esta razão, é normal que o mesmo teste possa ser muito útil para diagnóstico de casos suspeitos (onde a frequência de positivos é alta), mas pouco informativo para rastreio da população geral, especialmente em regiões com regras de confinamento obrigatório (onde a frequência de casos positivos será baixa). Para sabermos se a frequência de casos é realmente pequena, é importante as autoridades de saúde efetuarem rastreios aleatórios, mas se os resultados forem uma proporção de positivos baixa, é preciso cuidado na interpretação de resultados positivos individuais. Por exemplo, será que essa mesma pessoa já teve um teste de diagnóstico positivo?
Em geral, a utilização de testes serológicos em populações com baixa taxa de infeção esperada pode ser indesejável: empresas ou autarquias que realizem estes testes podem ficar com a ideia de que há mais casos de pessoas que já contactaram com o vírus do que a realidade. Mais grave é a possibilidade de algumas pessoas, ao saberem que o teste foi positivo, adotarem comportamentos de risco decorrentes de uma falsa sensação de segurança.
Mais ainda, no caso de uma pessoa que testou positivo, sendo falso positivo, venha a ser infetada, poder-se-á induzir a ideia de que as pessoas que já foram infetadas pelos vírus SARS-CoV-2 (porque apresentam anticorpos contra o vírus) podem contrair novamente infeção.
Como conclusão, apesar destes testes serem um importante recurso para acompanhar a evolução da luta contra a covid-19, a sua utilização deve ser devidamente planeada. O balanço entre o risco e o benefício na utilização destes testes em populações não expostas, como acontece na generalidade das empresas, deve ser tomado em conta. Nestas situações é expectável um benefício baixo e um risco elevado se o teste potenciar uma falsa sensação de segurança.
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico
Corrigido o lapso sobre a especificidade e a sensibilidade dos testes