A música e os novos media em tempos de pandemia
Recusar a identificação da música como uma arte cuja essência se joga em ser feita e experienciada ao vivo não é nem defender a priori a mediatização da música, nem recusar a especificidade da música ao vivo, nem ignorar que as condições para a realização de espectáculos ao vivo devem ser hoje protegidas.
Também eu anseio pelo momento em que poderemos de novo assistir a música, teatro ou ópera ao vivo. E ir ao cinema. E circular num museu. Também eu estou convencido de que, perante uma crise desta dimensão, o sector das artes, e das artes performativas em particular (na medida em que for mais afectado), deve ser alvo de uma atenção especialmente cuidadosa por parte do Estado. É, por isso, de louvar a iniciativa e o abaixo-assinado Artes Alerta.
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Também eu anseio pelo momento em que poderemos de novo assistir a música, teatro ou ópera ao vivo. E ir ao cinema. E circular num museu. Também eu estou convencido de que, perante uma crise desta dimensão, o sector das artes, e das artes performativas em particular (na medida em que for mais afectado), deve ser alvo de uma atenção especialmente cuidadosa por parte do Estado. É, por isso, de louvar a iniciativa e o abaixo-assinado Artes Alerta.
Dito isto, enquanto musicólogo, considero um erro partir para este debate com a ideia de que a música é uma arte cuja essência se joga em ser feita e experienciada ao vivo. Como se a mediatização da música a transformasse num produto de segunda, algo que se ouve porque se não tem acesso à “real thing”, algo que nos alegra, que nos consola, que nos faz “likar”, mas também encolher os ombros e suspirar: “são cópias, meras cópias do original, de um original que hoje — hélas! — nos é inacessível.” Pensar assim, entender que a música é uma arte cuja essência se joga em ser feita e experienciada ao vivo, é não só ignorar um século de interacção entre música e tecnologia, fazendo vista grossa ao alargamento do conceito de música que decorre dessa interacção, como é, também, contraproducente.
Não ignoro que a presente situação é particularmente ingrata para a música. O que hoje está em causa não é apenas que o público esteja impedido de se juntar numa plateia ou num relvado para assistir a um concerto de música ao vivo. O que se passa é que os próprios músicos, excepto os que actuam a solo ou em agrupamentos reduzidos, não se podem reunir nem para actuar nem para ensaiar. Nesse sentido, partilho a preocupação de quem lembra que a dinâmica de um ensaio presencial não é integralmente reprodutível em plataformas online. Mas, tal como apreciar um recital de Sokolov não nos impede de fruir uma gravação de Gould, ou tal como admirar os concertos improvisados de Keith Jarrett não nos obriga a menosprezar os álbuns de estúdio dos Beatles, também o facto de não ignorarmos as desvantagens da não co-presença entre músicos e entre músicos e audiência não nos obriga a reconhecê-la, a essa co-presença no espaço e no tempo, como condição sine qua non da produção e da recepção musicais.
A discussão tende a polarizar-se. E é a dicotomia que subjaz a essa polarização que importa desconstruir: de um lado, os nostálgicos do “ao vivo” como essência temporariamente inacessível; do outro, os arautos da mediatização como admirável mundo novo. Se, para os primeiros, nada é bom, ou suficientemente bom para estar à altura da essência da música, se não permitir a co-presença entre músicos e público, para os segundos nada pode ser mau se envolver algum tipo de mediação tecnológica. Aqui, não se trata de tomar partido. O pranto de quem chora a perda do original faz tão pouco sentido como a satisfação de quem exulta assim que vê um ecrã esquadrinhado pelo Zoom. Ou seja, para que fique claro: recusar a identificação da música como uma arte cuja essência se joga em ser feita e experienciada ao vivo não é nem defender a priori a mediatização da música, nem recusar a especificidade da música ao vivo, nem ignorar que as condições para a realização de espectáculos ao vivo devem ser hoje protegidas.
A música, disso não haja dúvidas, é uma arte performativa. A sua vertente material, e amiúde física, corporal, gestual e vocal, não pode ser ignorada. No entanto, enquanto arte performativa, atravessa o campo do sonoro, diluindo fronteiras entre “gravação” e “ao vivo”, “original” e “cópia”, “improvisação” e “interpretação”, “tradição” e “inovação”. É isto que nos ensina mais de um século de diálogo entre práticas musicais e tecnologias de captura, fixação, reprodução, manipulação, transmissão e geração sonoras: da música concreta e da música electrónica aos fenómenos recentes do “turntablism” e do “sampling”.
Não podemos evitar esta crise. Mas podemos e devemos combatê-la. Iniciativas como a do abaixo-assinado referido acima são louváveis por isso mesmo. E são-no tanto mais quanto o problema do subfinanciamento das artes, que hoje as torna ainda mais vulneráveis, não é de agora. Mas, se é importante combater a crise, também o é partir para esse combate sem os espartilhos de uma concepção essencialista, logo estreita, de música. Nem a música ao vivo ganhará com isso, nem o que possa emergir de novo desta crise merece ser imediatamente menorizado, como mero penso descartável para estancar uma ferida que, para o bem o para o mal, deixará as suas marcas.
Mais do que um piscar de olhos à suposta impermeabilidade entre artes em presença e tecnologias de remediação, deve orientar-nos, na resposta a esta crise, uma atenção muito concreta e circunstanciada às enormes dificuldades por que passa o sector da cultura (incluindo artistas e não-artistas, técnicos, produtores, companhias, agrupamentos, festivais). Este combate, no qual a inventividade terá uma palavra a dizer, deve ser feito, pensando no que se exige do Estado, com determinação e pragmatismo — evitando, porém, a retórica da essência e da autenticidade.