O “ativismo judicial” do Tribunal de Justiça da União
É essencial que o debate sobre o aprofundamento democrático da União Europeia continue a ser feito. Mas não o pode ser reduzindo a democracia à legitimação pelo voto nem vendo nos tribunais (nomeadamente o TJUE) a negação da democracia, mas sim um dos lugares onde ela é exercida.
Apesar de se inserir numa longa linha de decisões anteriores do mesmo tribunal (como o Prof. Paulo Rangel relembrou nas páginas deste jornal) e de outros tribunais constitucionais nacionais (veja-se, por exemplo, o acórdão 269/2017 do Tribunal Constitucional italiano ou o acórdão 5/2012 do Tribunal Constitucional da República Checa), a recente decisão do Tribunal Constitucional alemão veio servir de pretexto para reavivar debates (alguns adormecidos, outros nem tanto) sobre questões que em muito ultrapassam a mera interpretação daquele acórdão.
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Apesar de se inserir numa longa linha de decisões anteriores do mesmo tribunal (como o Prof. Paulo Rangel relembrou nas páginas deste jornal) e de outros tribunais constitucionais nacionais (veja-se, por exemplo, o acórdão 269/2017 do Tribunal Constitucional italiano ou o acórdão 5/2012 do Tribunal Constitucional da República Checa), a recente decisão do Tribunal Constitucional alemão veio servir de pretexto para reavivar debates (alguns adormecidos, outros nem tanto) sobre questões que em muito ultrapassam a mera interpretação daquele acórdão.
Um desses temas é o do suposto “ativismo judicial” do Tribunal de Justiça da União Europeia, que estaria a ultrapassar os tratados para construir a Europa, recentemente abordado pelo Prof. José Pedro Teixeira Fernandes num artigo neste jornal.
Como recordou a Prof. Catarina Botelho na conferência internacional “Tribunais Constitucionais – entre o Jurídico e o Político”, organizada pela MEDEL e pela Universidade Católica no Porto, em junho de 2017, “o ativismo judicial não é uma mera categoria jurídica, mas uma categoria interdisciplinar que incorpora igualmente aspetos económicos, sociais e políticos”, podendo assumir “contornos de um rótulo etéreo e adaptável ao que interessa defender” (“O lugar do Tribunal Constitucional no século XXI: os limites funcionais da justiça constitucional na relação com os demais tribunais e com o legislador”, Revista Julgar, 34, 2018). Importa, por isso, que seja cuidadosamente empregue, sob pena de poder ser distorcido e utlizado para outras finalidades.
O debate sobre a existência de um “ativismo judicial” por parte do TJUE não é recente. Desde pelo menos 1986, quando Hjalte Rasmussen lançou uma forte acusação nesse sentido (On Law And Policy In The European Court Of Justice: a Comparative Study In Judicial Policymaking) que essa questão tem sido alvo de discussão académica, quer ao nível da ciência jurídica, quer da ciência política – e decorrido todo este tempo não se pode de todo dizer que tenha sido alcançado um consenso. Em estudos baseados numa análise das decisões do TJUE e dos processos nos quais foram proferidas, não foram mesmo encontrados quaisquer indícios de falta de parcialidade contra os Estados por parte dos seus juízes e chegou‑se até à conclusão de que o TJUE acaba por ser muito permeável às posições que os Estados assumem, não adotando, portanto, uma postura militante a favor de um suposto “federalismo” (Clifford J. Carrubba e Matthew J. Gabel, International Courts and the Performance of International Agreements. A General Theory with Evidence from the European Union, Cambridge University Press, 2015; Olof Larsson e Daniel Naurin, “Judicial Independence and Political Uncertainty: How the Risk of Override Impacts on the Court of Justice of the EU", International Organization, 70, 2016).
A atuação do TJUE não pode deixar de ser enquadrada no todo que é a União Europeia e no esquema jurídico que os Estados pretenderam criar quando a configuraram, que se baseia num delicado equilíbrio entre os tratados fundadores e a aplicação prática dos princípios e normas jurídicos que deles emanam. Se assim for enquadrado, o papel que o TJUE desempenha é de (mais) um ator no complexo edifício jurídico da União, com não menos legitimidade democrática do que qualquer outro. Ainda que lhe queiramos chamar “ativismo judiciário”, esse será o normal exercício do papel que os Estados atribuíram ao TJUE e até mesmo o resultado do diálogo entre o TJUE e os tribunais constitucionais nacionais, sendo que, ironicamente, tal ativismo poderá ser ele próprio em muito determinado pela reação ao “ativismo judiciário” dos tribunais constitucionais nacionais, nomeadamente o alemão (como concluem Valerie Dhooghe, Rosanne Franken e Tim Opgenhaffen em “Judicial Activism at the European Court of Justice: A Natural Feature in a Dialogical Context”, Tilburg Law Review 20, 2015).
É essencial que o debate sobre o aprofundamento democrático da União Europeia continue a ser feito. Mas não o pode ser reduzindo a democracia à legitimação pelo voto – antes reconhecendo na democracia um debate contínuo e complexo, com interação de vários atores, cada um com a sua legitimidade – nem o pode ser vendo nos tribunais (nomeadamente o TJUE) a negação da democracia, mas sim um dos lugares onde ela é exercida. Caso contrário, estaremos inadvertidamente a corroborar dois dos principais argumentos dos governos populistas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico