Mediterrâneo está a ser palco de “tragédia” sem testemunhas, denunciam ONG
O ACNUR estima que 179 pessoas tenham morrido nesta rota central — a mais mortal do Mediterrâneo e que sai da Argélia, Tunísia e Líbia em direcção à Itália e a Malta — desde Janeiro. Numa Europa de portos fechados devido à pandemia, as partidas das costas da Líbia e da Tunísia têm aumentado e não há qualquer navio humanitário a fazer resgates.
Organizações internacionais e não governamentais denunciaram nesta quinta-feira que a rota migratória do Mediterrâneo está a ser palco de uma “tragédia” que decorre longe do olhar do mundo, denunciando os efeitos das medidas adoptadas para travar a pandemia de covid-19.
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Organizações internacionais e não governamentais denunciaram nesta quinta-feira que a rota migratória do Mediterrâneo está a ser palco de uma “tragédia” que decorre longe do olhar do mundo, denunciando os efeitos das medidas adoptadas para travar a pandemia de covid-19.
Numa Europa de portos fechados por causa da pandemia, as organizações apontam que as partidas de migrantes das costas da Líbia e da Tunísia têm vindo a aumentar nos últimos meses e que, neste momento, não há qualquer navio humanitário a realizar resgates na zona do Mediterrâneo.
“Se não existirem resgates no mar e os países continuarem a protelar decisões para resgatar e desembarcar as pessoas, acabaremos com situações humanitárias bastante graves”, disse, em declarações à AFP, o enviado especial para o Mediterrâneo Central do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), Vincent Cochetel.
O representante estima que 179 pessoas terão morrido nesta rota central — a mais mortal do Mediterrâneo e que sai da Argélia, Tunísia e Líbia em direcção à Itália e a Malta – desde Janeiro.
Na altura em que a Europa se tornou o principal foco global da pandemia de covid-19, apenas dois navios humanitários estavam a operar na zona e a realizar resgates: o Alan Kurdi, da organização não governamental (ONG) alemã Sea-Eye, e o Aita Mari, fretado por uma ONG do País Basco (Espanha).
Segundo recordaram as organizações, estes navios decidiram manter as operações, mesmo depois de Itália e de Malta terem fechado os respectivos portos no início de Abril devido ao novo coronavírus.
Apesar de alguns “braços-de-ferro” políticos e diplomáticos, alguns desembarques de migrantes acabaram por se concretizar nas últimas semanas.
Mas, segundo alertaram hoje as organizações internacionais, desde a semana passada, todas as operações de resgate foram canceladas.
Os navios Alan Kurdi e Aita Mari foram imobilizados pela guarda-costeira italiana devido a problemas “técnicos”, com as ONG visadas a denunciarem uma manobra injustificada unicamente destinada “à interrupção das missões de resgate”.
Segundo Vincent Cochetel, esta situação torna-se ainda mais sensível tendo em conta que as partidas de migrantes das costas da Líbia e da Tunísia têm vindo a aumentar nos últimos meses.
Os dados fornecidos pelo enviado especial do ACNUR indicam que as partidas das costas líbias aumentaram em 290% (cerca de 6629 tentativas) entre Janeiro e final de Abril, em comparação com o mesmo período em 2019.
Já as partidas das costas da Tunísia aumentaram 156% no mesmo período.
“Se existem ou não embarcações no mar, isso não influencia as partidas, e este período do coronavírus está a provar isso”, disse o representante do ACNUR, lembrando que vários países europeus chegaram a referir que “a presença de ONG [no Mediterrâneo] tinha um efeito magnético sobre as partidas”.
“Cerca de 75% dos migrantes na Líbia perderam o trabalho desde as medidas de contenção, o que pode levar ao desespero”, prosseguiu Vincent Cochetel.
Também a directora-geral da SOS Méditerranée (ONG com sede em França), Sophie Beau, alertou que a actual situação é “verdadeiramente dramática”, bem como está “em contradição com o direito marítimo internacional” que prevê o socorro, o mais rápido possível, a qualquer pessoa que esteja em perigo no mar.
“Agora, como não há testemunhas, não conhecemos a extensão da possível tragédia que está a ocorrer” no Mediterrâneo, avisou Sophie Beau, cuja ONG, responsável pelo navio humanitário Ocean Viking, deseja regressar ao mar “o mais rápido possível”, apesar da “criminalização” destas organizações.
Para a directora-geral da SOS Méditerranée, o actual período é “muito complexo” e as organizações “estão a acumular dificuldades”.
“A gestão da epidemia, o encerramento de portos e fronteiras (...). Além dessas restrições, a ausência de um mecanismo (europeu) coordenado”, disse ainda a representante, numa referência ao acordo para a distribuição de migrantes entre os países europeus após o desembarque, redigido no final de 2019 em Malta, mas que ainda não se materializou.
Na ausência de navios humanitários no Mediterrâneo, 162 migrantes estão neste momento bloqueados em mar a bordo de dois navios de turismo.