Como vivem a pandemia os crentes? “Foi um tempo de reflexão e autodescoberta”
A socióloga Maria José Núncio Silveira lançou o desafio e recebeu centenas de testemunhos de portugueses sobre como estão a gerir o confinamento por causa da covid-19.
O confinamento limitou a vivência da espiritualidade? Os judeus não foram às sinagogas e, mesmo agora, em pleno Ramadão, o mês mais importante do mundo islâmico, os muçulmanos não podem celebrar nas mesquitas. Até os que não precisam de templos, como os budistas, não saíram. Os católicos celebraram a eucaristia longe da igreja, não comungaram senão em espírito, e assistiram às celebrações marianas de Fátima a partir de casa e com velas à janela.
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O confinamento limitou a vivência da espiritualidade? Os judeus não foram às sinagogas e, mesmo agora, em pleno Ramadão, o mês mais importante do mundo islâmico, os muçulmanos não podem celebrar nas mesquitas. Até os que não precisam de templos, como os budistas, não saíram. Os católicos celebraram a eucaristia longe da igreja, não comungaram senão em espírito, e assistiram às celebrações marianas de Fátima a partir de casa e com velas à janela.
O espaço físico exterior encolheu, mas o interior nem tanto. Para os crentes e não crentes, foi “activado” o caminho interior do autoconhecimento, descreve a socióloga Maria José da Silveira Núncio, depois de ter lido centenas de testemunhos que lhe chegaram via redes sociais e cujo conteúdo se encontra a analisar, desde que começou a crise pandémica. “Foi um tempo de reflexão e autodescoberta”, resume.
Embora o estudo da professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP) — onde questionou como estavam os portugueses a viver a quarentena —, não tenha a “pretensão de ser representativo da sociedade portuguesa”, permitiu perceber que há uma dimensão espiritual e um desejo de autoconhecimento por parte dos inquiridos. Isso surpreendeu-a, refere ao PÚBLICO. “Verifiquei que houve uma intensificação da vida espiritual, mesmo em pessoas que já tinham fé religiosa”, nota.
Todavia, também houve registos de pessoas que questionam não só a fé mas também a existência de Deus, motivadas pela revolta perante esta situação. Diz um dos testemunhos: “Às vezes pergunto-me por que razão Deus nos mandou, a todo o mundo, semelhante provação. Estará assim tão zangado connosco, com a humanidade? E se assim é, porquê fazer sofrer os mais frágeis, velhos e doentes?”
Este fenómeno, mesmo numa sociedade secularizada, não surpreende Sónia Garrucho, psicóloga clínica. “As situações de crise são muito potenciadoras da auto-reflexão”, explica. A socióloga Maria José Silveira Núncio também notou que muitos dos inquiridos aproveitaram para reflectirem, numa experiência de autodescoberta e autoconhecimento. O facto de terem mais tempo favoreceu a introspecção, explica.
Com um aumento considerável de pedidos de consulta, ainda muito em torno da “incerteza no mundo laboral e do lay-off”, Sónia Garrucho antevê outro tipo de problemas como as dúvidas existenciais que, em seu entender, vão agravar-se. “No desconfinamento, acho que vai haver muita procura de apoio de psicólogos, psiquiatras e também de guias espirituais”, prognostica.
Leonor Mexia, uma católica que sente falta da igreja
Católica praticante desde que se conhece, a autora Leonor Mexia teve de aprender uma nova forma de viver a religião. “Esta falta da relação presencial com Jesus na Igreja fez-me, ainda mais, procurar outra intimidade e relação com Ele”, confessa, acrescentando que não foi um processo “automático ou fácil”.
Em casa, no Porto, com uma família de quatro pessoas, teve de encontrar os seus espaços de silêncio e recolhimento, reaprendeu a dar valor espiritual a coisas triviais como pôr a mesa ou servir uma refeição, exemplifica. A autora de livros infantis passou a contemplar o seu pequeno jardim e a “ouvir os passarinhos”. Porém, começou a pensar “muito na solidão de muitas pessoas”, revela. “A minha fé só faz sentido se for praticada e se estiver ao serviço dos outros”, defende. Por isso, faz parte de um grupo de oração pelos doentes que costuma visitar os hospitais, o que não foi possível nas últimas semanas.
“A fé é uma coisa viva, dinâmica”, justifica Leonor Mexia, que não estranha a utilização da internet nesta fase mais complicada. No entanto, não vê a hora de estar em comunidade com outros católicos, na sua igreja, e com os doentes, nos hospitais.
Khalid Jamal, um muçulmano que não pode ir à mesquita
Para Khalid Jamal, da Comunidade Muçulmana de Lisboa, não há dúvidas: a pandemia veio mostrar que “estamos todos no mesmo barco”. E justifica: “Todas as diferenciações entre a humanidade se esbateram, sejam elas políticas, sociais, económicas, religiosas ou de género.” Por isso não duvida que Deus quis enviar uma mensagem. “A fé é indispensável para lidar com tudo isto”, declara.
Apesar disso, sente que esta é a maior provação de sempre. “Em pleno Ramadão estamos sem poder ir à mesquita”, lamenta. “Todos os dias, às 20h30, quando acaba o jejum, devíamos ir celebrar e orar juntos. É uma dor só igualável à dor da distância da famíla”, confessa. Agora, às cinco orações diárias, Khalid resolveu acrescentar mais uma. “Nesta altura, procuramos respostas e a oração é o grande antídoto para a incerteza”, defende.
“Não penso que Deus quisesse castigar o homem”, continua. “Prefiro a abordagem de que isto é um teste e uma provação”, refere. “O mal que estávamos a fazer ao planeta já é razão para Deus nos ‘decretar’ esta paragem obrigatória.” No entanto, olha com esperança para o futuro.
Isaac Assor, um judeu que olha para a pandemia como o dilúvio
Desde o primeiro momento desta pandemia que Isaac Assor a vê como “um sinal de Deus à humanidade”. O chazan, oficiante litúrgico das cerimónias judaicas, compara esta pandemia ao mito do dilúvio do Antigo Testamento, no qual Deus pede a Noé que salve o mundo e as espécies. “Quem mais podia parar o mundo assim? Deixar as frotas aéreas em terra?”, pergunta. “Só Deus!”, responde, sem hesitação.
“Com isto não quero dizer que [o vírus] seja uma fatalidade para o homem”, salvaguarda. Pelo contrário, vê nesta doença “um apelo de Deus à humanidade”, defende que “o mundo e o homem tinham de parar e Deus fez isso”. Há muito tempo que “a humanidade sofre com a falta de tempo para tudo, com o individualismo e a ganância”, por isso, acredita que este tempo de isolamento obrigou as pessoas a pensarem umas nas outras: “Há quanto tempo não pegávamos no telefone para saber de uma senhora de 80 anos que vive sozinha? Se calhar, pensávamos sempre em fazê-lo, mas não ligávamos.”
Sem a possibilidade de ir ao templo, em Lisboa, “Deus põe as novas tecnologias ao serviço da fé”. Por enquanto, a comunicação é feita à distância, mas mal estejam reunidas as condições sanitárias e as regras da liturgia judaica, Isaac Assor espera que a comunidade possa voltar à sinagoga. “A comunhão da fé tornou-se mais urgente.”
Yumma Mudra, uma budista que aplica os ensinamentos do Dalai Lama
“O Dalai Lama diz que, quando não podemos resolver uma situação, não devemos preocupar-nos com ela”, começa por dizer Yumma Mudra, professora de dança e budista tibetana, portuguesa a viver na Bélgica. “Parece muito simplista o que ele diz, mas não é”, continua. “Tem a ver com libertarmo-nos das causas do sofrimento pela meditação e exercício físico”, acrescenta.
Embora, a incerteza faça parte da vida “e isso não tem de ser só mau”, a pandemia da covid-19 e a quarentena não a deixaram em pânico. “Tenho o hábito de estar em retiros e desenvolvi a capacidade de gerir as minhas emoções. Se eu tenho de estar uma semana confinada, posso aproveitá-la para criar um campo de energia positivo para o futuro.”
Para a professora de dança, o budismo tibetano tem sido uma ferramenta preciosa. Tanto agora como noutras alturas, como aquela em que esteve internada com uma tuberculose. Então, foi à meditação budista que recorreu. Neste momento, já sente a falta de estar com pessoas, das suas aulas de dança e da partilha de ideias com a comunidade budista.